Os danos da pandemia da covid-19 na saúde do coração estão entre as principais preocupações dos profissionais da área. Isso porque algumas complicações cardiovasculares podem ser incapacitantes e fatais. Cientistas britânicos divulgam hoje um panorama que justifica o estado de alerta. Depois de analisar dados de 48 países, coletados entre dezembro de 2019 e dezembro de 2021, eles constataram um "declínio global substancial" nos atendimentos hospitalares de casos de infarto, insuficiência cardíaca e outros problemas do tipo.
Sem medidas de mitigação, avaliam os investigadores, o cenário de interrupção na assistência médica terá desdobramentos que devem nos acompanhar "por um longo tempo." "A doença cardíaca é o assassino número um na maioria dos países, e a análise mostra que, durante a pandemia, em todo o mundo, as pessoas não receberam os cuidados cardíacos que deveriam ter recebido. Isso terá ramificações", alerta Tamesh Nadarajah, pesquisador clínico da British Heart Foundation, na Universidade de Leeds, e principal autor do artigo, publicado no European Heart Journal.
De forma geral, houve queda de 22% no número de pessoas com ataque cardíaco grave (quando uma das artérias que atendem o coração está completamente bloqueada) atendidas em hospitais, e de 34% daquelas em quadros menos graves (quando a artéria está parcialmente bloqueada). O número de cirurgias também diminuiu: em média, 34%. E quem procurou uma unidade de saúde esperou por 69 minutos a mais para ser atendido, se comparado ao período anterior à crise sanitária (veja quadro).
Uma das análises feitas pelos britânicos é de que, como o número de complicações cardíacas não caiu, houve, na verdade, um aumento no número de pessoas morrendo em casa ou nas comunidades. Dentro das unidades de saúde, o número de óbito também cresceu, principalmente em países de média e baixa renda, onde, segundo os autores, hospitais e clínicas nem sempre puderam oferecer os tratamentos considerados padrão-ouro.
Nadarajah lembra que, em casos de complicações cardiovasculares, a espera por atendimento ou a oferta de uma terapia pouco eficaz pode ter graves consequências. "Quanto mais as pessoas esperam pelo tratamento para um ataque cardíaco, maior o dano ao músculo cardíaco, causando complicações que podem ser fatais ou causar problemas crônicos de saúde", detalha. O levantamento indica um aumento de 17% nos óbitos por qualquer causa entre pacientes hospitalizados após infarto ou insuficiência cardíaca.
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Subnotificações
As informações analisadas fazem parte de 189 trabalhos de pesquisa sobre os impactos da covid-19 nos serviços cardiovasculares de 48 países, distribuídos em seis continentes. Segundo a equipe britânica, esse retrato é a primeira avaliação global da maneira como profissionais do ramo atuaram na crise sanitária. Para isso, eles investigaram as pesquisas e uma gama de serviços cardíacos, como hospitalizações, gerenciamento de doenças, procedimentos de diagnóstico, consultas ambulatoriais e taxas de mortalidade.
Ainda assim, o grupo avalia que falta um retrato mais fidedigno das regiões em que o problema é mais crítico. Como os dados de países de baixa e média renda são escassos, os pesquisadores acreditam que os levantamentos e os estudos nesses locais podem subestimar a verdadeira extensão do impacto da interrupção dos atendimentos em função da covid-19.
Na avaliação de Samira Asma, diretora-geral assistente de Dados, Análises e Entrega de Impacto na Organização Mundial da Saúde (OMS), o estudo mostra como o ônus da pandemia afeta o planeta de forma desproporcional. "Suspeitamos que isso aumentará a desigualdade nos resultados de saúde dos cuidados cardíacos entre países de alta renda e de baixa e média renda, onde 80% da população mundial vive. Isso ressalta a necessidade de uma cobertura universal de saúde e de acesso a cuidados de qualidade, ainda mais durante a pandemia", defende a também autora do estudo.
No início deste mês, a agência das Nações Unidas divulgou estimativas referentes ao excesso de mortes associadas à pandemia da covid-19 — análise que incluiu pessoas que não tiveram acesso à prevenção e ao tratamento de doenças cardiovasculares devido à sobrecarga dos sistemas de saúde. Durante 2020 e 2021, a OMS calculou que ocorreram, no mundo, 14,9 milhões de óbitos em excesso.