Mais de uma década depois de surgirem como uma alternativa ao tabaco, os cigarros eletrônicos já demonstraram ser tão danosos quanto. A quarta geração do dispositivo, que pode ser regulamentado no Brasil, preocupa especialistas pelo aspecto mais apelativo e devido às substâncias inaladas serem mais viciantes. Novas pesquisas indicam que o chamado vaping não afeta apenas o sistema respiratório e, assim como o tabagismo tradicional, chega a desregular alguns genes.
Cigarros eletrônicos são dispositivos que usam uma bateria elétrica para aquecer um líquido em um aerossol, que o usuário inala. Os mais populares geralmente contêm nicotina ou THC (a substância psicoativa da maconha), aromatizantes e outros produtos químicos dissolvidos em uma base oleosa. Acetato de vitamina E, diacetil, formaldeído e acroleína são algumas entre as centenas de substâncias potencialmente perigosas encontradas nos chamados e-líquidos e seus vapores.
Recentemente, pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia (USC), nos Estados Unidos, relataram, pela primeira vez, a associação dos cigarros eletrônicos com mudanças biológicas que podem causar diversas doenças. No estudo, publicado na revista Scientific Reports, os autores destacam que os usuários do dispositivo, também chamados de vapers, sofrem alterações na regulação de genes, tal como ocorre com os fumantes, embora, nestes últimos, elas sejam mais extensas.
A pesquisa, conduzida pelo professor da USC Ahmad Besaratinia, é a primeira a avaliar os efeitos biológicos do vaping em usuários de cigarros eletrônicos. Os dados indicam que, assim como o tabagismo, a prática desregula os genes mitocondriais e interrompe vias moleculares envolvidas na imunidade e na resposta inflamatória. Em outras palavras: as substâncias usadas no dispositivo dificultam o organismo a lutar contra doenças e podem, ainda, desencadear enfermidades autoimunes.
No estudo, os cientistas sequenciaram o genoma total de 82 adultos, divididos em três grupos: vapers (com ou sem histórico de tabagismo), fumantes e pessoas que nunca fumaram. Os pesquisadores buscaram alterações na regulação genética das células sanguíneas. "Quando a regulação normal dos genes é interrompida e eles se tornam desregulados, isso pode interferir na função do gene, levando ao desenvolvimento de doenças", diz Besaratinia. De acordo com ele, mais de 80% das alterações nos usuários de cigarro eletrônico tinham relação direta com a intensidade e a frequência com que o produto era usado.
Tanto em vapers quanto em fumantes, os genes mitocondriais são os alvos preferidos da desregulação. "Quando as mitocôndrias se tornam disfuncionais, elas liberam moléculas que podem funcionar como sinais para o sistema imunológico, desencadeando uma resposta imune que leva à inflamação. Esse processo desempenha um papel crítico no desenvolvimento de várias doenças cardiovasculares, respiratórias, metabólicas e câncer", afirma Besaratinia. Um estudo anterior do cientista, em 2019, mostrou que o cigarro eletrônico provoca as mesmas alterações químicas e moleculares observadas na mucosa oral de fumantes.
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Danos sistêmicos
Para ajudar a esclarecer os efeitos dos cigarros eletrônicos na saúde, a pneumologista Laura E. Crotty, pesquisadora da Universidade da Califórnia, realizou, recentemente, uma revisão das evidências científicas disponíveis sobre vaping e danos pulmonares, publicada na Annual Review of Physiology. A médica se disse surpresa ao constatar que os dispositivos são muito mais perigosos do que pensava. "Inicialmente, acreditei, no fundo do meu coração, que nada se comparava aos perigos de fumar tabaco convencional. Ao longo de oito anos de pesquisa, e conforme afirmado por essa nova revisão das evidências, ficou claro, para mim, que os cigarros eletrônicos causam o próprio conjunto de doenças que parecem afetar praticamente todos os órgãos do corpo — do cérebro à bexiga."
O artigo resume o que outros cientistas descobriram anteriormente, incluindo efeitos agudos de curto prazo e impactos crônicos de longa duração. Mas também destaca que um dos maiores perigos associados ao cigarro eletrônico é, justamente, não se saber tanto sobre ele. "Temos de buscar a compreensão dos mecanismos biológicos e da imunologia associados ao vaping", afirma Crotty. "O que está acontecendo dentro do corpo? Como acontece a inflamação? Por que as células estão respondendo da maneira que fazem?", exemplifica.
De acordo com a pneumologista, entre as descobertas mais preocupantes reforçadas pela revisão está a associação do vaping com alterações no sistema imunológico. "As células imunológicas parecem ser desativadas à medida que os pulmões são continuamente encharcados com produtos químicos de uma maneira que pode enfraquecer as defesas de uma pessoa contra ameaças como pneumonia bacteriana ou viral, bem como câncer", enfatiza.
Uso duplo
Divulgado na sexta-feira, um novo estudo também verificou que, ao contrário do que pensam muitos usuários, os dispositivos eletrônicos não diminuem o risco de doenças cardiovasculares, comparado ao tabaco. Publicada na revista Circulation, da Associação Norte-Americana do Coração, a pesquisa utilizou dados de 24 mil adultos, sendo que metade deles tinha menos de 35 anos. Ao avaliar informações de saúde coletadas de 2013 e 2019, os cientistas constataram que alternar o cigarro convencional com o vaping não significou uma redução de eventos como infarto e insuficiência cardíaca entre os participantes.
De acordo com o professor da Escola de Saúde Pública da Universidade de Boston Andrew C. Stokes, principal autor do estudo, é preocupante o fato de que alguns tabagistas, na tentativa de parar de fumar, acabam apelando para os cigarros eletrônicos, enquanto continuam fumando os convencionais. "Muitos fumantes que tentam usar cigarros eletrônicos para parar de fumar de forma tradicional continuam consumindo ambos os produtos, tornando-se usuários duplos", diz Stokes. "Estamos preocupados que qualquer recomendação do uso de cigarros eletrônicos para a cessação do tabagismo possa levar ao aumento do uso duplo, bem como à iniciação de cigarros eletrônicos entre adultos jovens e aqueles que nunca fumaram cigarros."
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Pneumologista da Fundação São Francisco Xavier, em Minas Gerais
Quando surgiram, os cigarros eletrônicos foram apresentados como uma substituição menos danosa que o tabaco para pessoas que queriam parar de fumar. O que já se sabe, hoje, sobre os danos potenciais ao sistema respiratório?
Hoje, já sabemos que existe uma patologia decorrente do uso do cigarro eletrônico, que é a EVALI (E-cigarette, or Vaping, product use-Associated Lung Injury). Os principais sintomas são tosse, falta de ar e dor no peito. A doença pode ser confundida com infecções virais causadas pela influenza ou até mesmo com covid. As imagens radiológicas podem ser semelhantes às imagens da covid, como presença de vidro fosco e consolidações. O tratamento, na maioria das vezes, é a cessação, ou seja, interromper o uso do cigarro eletrônico e, em casos mais graves, pode-se usar até corticoide. É uma doença nova justamente pelo uso mais frequente desse dispositivo entre populações que, previamente, nem sequer fumavam ou até mesmo tentaram parar de fumar por meio do uso do cigarro eletrônico. Esse não é um método adequado para largar o vício do cigarro, visto que também é composto por nicotina e causa danos à saúde.
Alguns estudos sugerem que o cigarro eletrônico desregula genes do sistema imunológico. Isso poderia enfraquecer as defesas naturais?
O paciente que usa cigarro eletrônico está mais predisposto a ter doenças do sistema respiratório. Todo dano ao sistema imunológico vai prejudicar as defesas do nosso organismo. A EVALI é uma doença específica do cigarro eletrônico. No entanto, os usuários do cigarro eletrônico também podem vir a apresentar infecções secundárias, como pneumonias e infecções brônquicas.
Os cigarros eletrônicos se tornaram populares não só entre quem quer abandonar o tabaco, mas também entre quem nunca havia fumado. Especialmente para adolescentes e jovens, o que o uso dessas substâncias pode causar?
O cigarro eletrônico tem atraído muito a população jovem e até mesmo crianças, por ser um dispositivo moderno, de fácil acesso e ainda dar a sensação de imperceptível. Ele também chama a atenção por apresentar essências que podem encantar esse público. Até o formato em que ele é apresentado, em pen-drive, já atrai esses jovens. Mas engana-se quem pensa que ele é inofensivo. Ele pode causar danos à saúde ao longo do tempo, como a própria doença do cigarro eletrônico e mesmo outras. O cigarro eletrônico traz na sua composição a nicotina e substâncias que podem ser danosas. Temos um problema sério, pois esses dispositivos sequer são regulamentados. No último dia 2 de maio, o Conselho Federal de Medicina enviou nota junto à Sociedade Brasileira de Pneumologia e outras sociedades médicas reiterando a sua posição contrária à liberação desses dispositivos no Brasil. O cigarro eletrônico não é um produto regulamentado, supervisionado, que tem controle de qualidade. O dano que ele traz e que ele ainda poderá causar pode ser ainda maior.
Busca por evidências
Embora facilmente encontrados para vender, especialmente em sites, o cigarro eletrônico é proibido no Brasil desde 2009. Em 11 de abril, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) abriu um tipo de consulta para receber evidências científicas e técnicas sobre o vaping. O objetivo é avaliar a possibilidade de autorizar e regulamentar a venda do produto no país. O processo de discussão sobre o tema teve início em 2019.