Dois anos depois de a pandemia da covid-19 ser declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), houve avanços significativos na prevenção, graças ao desenvolvimento, em tempo recorde, das vacinas. Porém, apesar de centenas de compostos serem testados em laboratórios de todo o globo, a descoberta de tratamentos específicos para a infecção foi bem mais modesta. Enquanto a imunização garantiu a redução de casos e da mortalidade, a busca de terapias que ataquem o Sars-CoV-2 e a doença causada por ele continuam mobilizando a ciência.
Segundo o rastreador de desenvolvimento de terapias para Bio Covid-19 — a maior associação mundial representante de companhias biotecnológicas, instituições acadêmicas e organizações relacionadas —, hoje, há 857 compostos sendo pesquisados, sendo 270 antivirais, que impedem a entrada e a replicação do vírus nas células, e 353 tratamentos voltados a pessoas já infectadas. O restante, 234, são vacinas. Do total, 452 encontram-se no estágio pré-clínico, ou seja, ainda não foram testados em humanos, e 405, na fase clínica.
Dos compostos antivirais investigados, 71% estão sendo desenvolvidos especificamente para a covid-19. Vinte e dois por cento são tentativas de direcionar ao Sars-CoV-2 medicamentos do tipo, criados para outros vírus, e 7%, de aproveitar uma droga existente, mas de outra classe, para testar seu potencial em combater o micro-organismo responsável pela pandemia. Já a busca por novos compostos para tratar a doença é menor: 12% dos 353 pesquisados. O redirecionamento corresponde a 65%, e o reaproveitamento, a 23%. "Além de cara, a pesquisa de antivirais é demorada e envolve diversas fases", lembra Milton Monteiro, enfermeiro infectologista do Hsanp, hospital de São Paulo.
Zucai Suo, professor de ciências biomédicas da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual da Flórida, pesquisa as diferentes vias de infecção das células pelo Sars-CoV-2 e diz que, especialmente com a emergência de variantes que fogem da proteção imunológica conferida por vacinas ou contágios prévios, a busca de medicamentos continua fundamental. "A covid-19 tem afetado negativamente o trabalho e a vida das pessoas desde o fim de 2019. Atualmente, existe a aprovação de vacinas e de diversos anticorpos monoclonais e pequenas moléculas para tratar a infecção. Embora o número de pessoas infectadas com covid tenha diminuído significativamente agora, ainda precisamos desenvolver drogas mais potentes, de amplo espectro e de rápida ação, para tratar pacientes infectados por novas variantes no futuro", destaca.
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Drogas combinadas
As linhas de ataque investigadas atualmente são diversas — 31, segundo a Bio Covid-19 —, e vão de estimuladores do sistema imunológico a reguladores hormonais. Lideram o ranking de abordagens os anticorpos específicos para o Sars-CoV-2, os anti-inflamatórios e as drogas que impedem a replicação viral.
Recentemente, muitos estudos têm buscado a combinação de compostos para atacar o coronavírus e tratar a covid-19. Foi assim que se chegou ao primeiro medicamento específico para a doença, recém-aprovado para uso emergencial no Brasil. O Paxlovid, da Pfizer, é um coquetel oral que combina as substâncias antivirais nimatrelvir e ritonavir. Indicado para infecções com risco de progressão para doença grave, o remédio reduziu em até 89% a hospitalização, segundo estudos apresentados pela farmacêutica.
A abordagem de juntar substâncias está sendo empregada em um estudo conjunto do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz e do Instituto Oswaldo Cruz, com cientistas de três instituições norte-americanas. Em um artigo publicado recentemente na revista Communications Biology, a equipe relatou que, ao combinar dois tipos de inibidores de enzimas que permitem a reprodução do Sars-CoV-2 nas células, a redução de replicação viral foi 10 vezes maior que a obtida pelo medicamento remdesivir, que usa apenas uma dessas frentes.
As substâncias, testadas em células pulmonares infectadas, já existem comercialmente. Uma delas, inclusive, é o remdesivir, um inibidor da polimerase. "Escolhemos propositalmente inibidores já aprovados como medicamentos para o tratamento de outras infecções virais comuns, como as causadas por vírus HIV e hepatites, com o objetivo de poder avançá-los rapidamente para a clínica", observa Thiago Souza, pesquisador do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde do Instituto Oswaldo Cruz e um dos líderes do estudo.
Agora, os pesquisadores estudam se os efeitos antivirais vistos na cultura celular se repetirão em um modelo animal com covid e apresentem propriedades farmacológicas aceitáveis. Se os resultados forem positivos, os medicamentos podem ser rapidamente incluídos em ensaios clínicos, com humanos, pois já foram aprovados previamente para tratamentos de doenças como hepatites virais e HIV.
Na Universidade de Maryland, nos EUA, pesquisadores também apostam na combinação de medicamentos para uma resposta mais eficaz contra o vírus. Depois de rastrear 122 drogas com atividade antiviral contra o Sars-CoV-2, eles descobriram que duas davam origem a um coquetel poderoso. Assim como no estudo brasileiro, uma das substâncias é o remdesivir. A outra é o molnupiravir, que age mutando a sequência genética do micro-organismo, o que evita que ele se desenvolva.
Sozinho, o molnupiravir, uma droga experimental da Merck Sharp & Dohme (MSD), elimina o vírus em três dias, conforme um estudo com humanos divulgado, na semana passada, no The New England Journal of Medicine. Na pesquisa norte-americana, os cientistas usaram células pulmonares humanas em camundongos e verificaram que, em combinação com a substância brequinar, que vem sendo investigada para o câncer, tanto o molnupiravir quanto o remdesivir inibe a reprodução do coronavírus de forma mais potente que o uso individual.