A humanidade tem apenas três anos para frear as emissões de poluentes do efeito estufa e impedir consequências irreversíveis ao planeta desencadeadas pelo aquecimento global. A data-limite faz parte da terceira e última parte do relatório produzido por especialistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) — um documento divulgado ontem e considerado referência nas discussões sobre mudanças climáticas. No mesmo dia, a Organização Mundial de Saúde (OMS) revelou um dado que ilustra bem a atual urgência climática: praticamente toda a população mundial, diz a agência, respira um ar considerado impróprio. Ambas as entidades, que fazem parte das Nações Unidas, defendem que abandonar o uso de combustíveis fósseis é a melhor saída para reverter esse cenário catastrófico.
Nos últimos meses, o IPCC publicou as duas primeiras partes de uma trilogia de avaliações científicas que descrevem o efeito estufa e os seus prejuízos. A última parte, que foca nas medidas a serem tomadas para lidar com os problemas climáticos, foi divulgada após um trabalho exaustivo dos cientistas. "Esse documento vem sendo montado há quatro anos e, nos últimos três, nós sofremos alguns atrasos devido à pandemia. O relatório contou com a participação de 268 autores, de 65 países, e avaliou milhares de estudos científicos", detalha Mercedes Bustamante, professora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB) e uma das autoras do relatório.
As análises do IPCC trazem dados preocupantes. Por exemplo, para que a humanidade tenha uma chance de pelo menos 50% de estabilizar o aquecimento global em 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, como definiu o Acordo de Paris, as emissões globais de gases de efeito estufa precisam atingir o pico entre 2020 e 2025 e cair 43% até 2030. A condição, porém, parece improvável de ser atingida, já que a produção desses gases nocivos apresentou queda durante a pandemia, mas voltou a subir em 2021. Segundo os autores do documento, as políticas públicas atuais abrem caminho para um aquecimento global de 3,2°C até o fim do século e, com isso, o objetivo de aumento máximo de 1,5°C na temperatura média do planeta está "fora de alcance".
Os especialistas também concluíram que a quantidade de gás carbônico emitida até hoje corresponde a 80% de tudo o que a humanidade pode produzir se quiser ter uma chance de 50% ou mais de estabilizar o aquecimento da Terra em 1,5°C, mas a produção desse poluente gerada pelo setor industrial e a queima de combustíveis fósseis caiu apenas 0,3% por ano, na última década. Para atingir a meta de Paris, essa redução precisaria ser de 7,7% por ano (25 vezes maior). "Alguns governos e líderes empresariais dizem uma coisa, mas fazem outra. Para ser sincero, eles mentem. E os resultados serão catastróficos", declarou o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, em uma mensagem de vídeo divulgada após o lançamento do relatório.
Para Mercedes Bustamante, o documento emite mensagens importantes. "Ele mostra que não estamos seguindo a trajetória de quem quer cumprir o Acordo de Paris e que a possibilidade para que isso ocorra está centrada nos próximos anos. Lembrando que manter o 1,5°C não garante que ficaremos sem sofrer impactos, até porque já estamos vendo eventos extremos no planeta e desequilíbrios no ecossistema", enfatiza a professora da UnB.
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Novos hábitos
Os autores do relatório avaliam que a medida que pode impedir um cenário climático catastrófico é o abandono de fontes de energia poluentes. Eles defendem que, até 2050, o uso de carvão deve ser extinguido totalmente, com uma redução de pelo menos 60% no uso de petróleo e de 70%, no de gás. Além disso, para que o futuro da humanidade seja "viável", as emissões de CO2 devem ser reduzidas até 2025. "Estamos diante de uma encruzilhada. As decisões que tomarmos agora podem garantir um futuro viável. Temos as ferramentas e o conhecimento necessários para limitar o aquecimento", diz o chefe do IPCC, Hoesung Lee.
Entre as medidas indicadas, está avançar na implementação de tecnologias de absorção de CO2 da atmosfera, que nunca foram utilizadas de forma massiva. "É essencial ter políticas públicas, infraestruturas e tecnologia para poder mudar nosso estilo de vida e nossos comportamentos", defendem os autores. Na avaliação de Bustamante, o Brasil é um país com potencial para adotar as mudanças sugeridas. "Trocar combustíveis fósseis pelos biocombustíveis e substituir o plástico por materiais feitos de biomassa, por exemplo, é o caminho certo a seguir. Um país com grandes extensões naturais, uma agricultura bem instalada e um histórico de energias sustentáveis, como o Brasil, tem potencial para essa mudança", justifica.
Assim que o documento foi divulgado, especialistas da área ambiental se manifestaram a favor das propostas. "O relatório de mitigação do IPCC mostra que já temos os caminhos para o combate à crise climática e que eles passam, para além de soluções tecnológicas, por soluções políticas", afirma, em comunicado, Marcelo Laterman, porta-voz de Clima e Justiça do Greenpeace Brasil, que também chama a atenção para a importância da justiça climática. "Sem o enfrentamento e a correção das desigualdades históricas, tanto entre países quanto entre povos, classes, raças, gêneros, territórios, entre outras, não haverá saída efetiva para essa crise", justifica.
A opinião é compartilhada por Mercedes Bustamante. "Queremos levar esses dados para a próxima Conferência do Clima (COP) e esperamos que não só os governos, mas também os consumidores, reflitam sobre o impacto do seu estilo de vida. É importante fazer essa virada de chave, mas sem esquecer que ela precisa vir acompanhada com outras preocupações, como a redução da pobreza, da vulnerabilidade e da justiça social", diz uma das autoras do relatório.
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Alerta claro e prazo curto
"Na primeira parte do relatório do IPCC, vimos, de maneira muito clara, quais são os desafios climáticos que estamos enfrentando. Na segunda, tivemos uma noção do tamanho do sofrimento que eles vão causar, principalmente aos mais vulneráveis. Nessa nova etapa, as notícias seguem não sendo boas, pois nos mostram que não estamos no caminho correto. Mas temos opções para ajudar a frear a emissão de gases tóxicos e o efeito estufa. Para conseguir isso, temos que tomar ações imediatas e profundas, assumindo um compromisso sólido de reduzir essas emissões até 2030. Só assim, conseguiremos manter o compromisso firmado no Acordo de Paris. Não passar do 1,5°C é algo cada vez mais urgente. Nós já estamos na prorrogação do segundo tempo e ainda não fizemos essa mudança de rota."