“Muito normal para ser autista, estranho demais para ser normal”, diz o professor Guilherme Almeida ao comentar sobre como as pessoas reagem a um autista diagnosticado na vida adulta. As noções de “normalidade” ainda presentes na sociedade contribuem para que o Transtorno do Espectro Autista (TEA) seja associado exclusivamente à infância e visto de forma estereotipada.
No entanto, o autismo é classificado em três níveis, e é possível ser diagnosticado na vida adulta. “Há 40 anos, só eram diagnosticados como autismo aqueles casos com nível de suporte maior, a perspectiva de que o autismo envolve outras questões é muito mais recente. Muitos profissionais ainda têm essa visão antiga de que para ser autista tem que ter deficiência intelectual ou não conseguir falar”, ressalta o professor, que foi diagnosticado há pouco mais de um ano.
Dificuldades em interagir e criar vínculos são as características mais perceptíveis em adultos no nível 1 do espectro, podendo ser interpretados como muito tímidos e receberem diagnósticos de depressão ou ansiedade. A hipersensibilidade sensorial também é presente e causa sobrecarga, Guilherme conta que uma ida ao supermercado causa cansaço e até dor de cabeça por ter que lidar com muitos estímulos. “Isso não é só uma característica psicossocial, mas é biológica, meu corpo responde assim”, explica.
O professor afirma também que a percepção de que os autistas não têm empatia é errada, pois eles só não têm facilidade de transmitir sentimentos. "A gente sente tudo, não existe quem não sinta”, diz. Depois do diagnóstico, Guilherme criou o Coletivo Autista da Unicamp (CAUCamp), em julho de 2021. O grupo encaminha pessoas que suspeitam estarem no espectro para especialistas, com o custo de valor social. De lá para cá, 52 pessoas foram diagnosticadas autistas.
Além do desconforto sentido desde a infância, ter filhos diagnosticados também costuma ser um ponto de partida para a suspeita de adultos em relação ao TEA. “Quando eu tive meu filho, a palavra autismo entrou na minha vida”, conta a professora e ativista Luciana Viegas, que já trabalhava com pessoas com deficiência. “A primeira reação que tive não foi de superproteção, mas de negação, porque eu via no meu filho muitas coisas minhas, eu estava diante de um espelho de quando eu era criança”, lembra.
No início da investigação do autismo, Luciana ouviu de uma neurologista que ela não poderia ser autista, pois é casada e mãe. Desde a adolescência, ela sentia que vivia em constante dor. A professora conta que sente fortes dores de cabeça e tomava remédios para enxaqueca até saber que a dor estava relacionada ao autismo e que se tratava de uma crise de transtorno de processamento sensorial.
Os neurodivergentes podem ter comportamentos diferentes da norma que os neurotípicos - não autistas - seguem, e acabam sendo rotulados. A psicóloga Aline Provensi relata que, desde criança, recebeu rótulos como "estranha", "esquisita", "alien". Ela é especialista em TEA e foi diagnosticada autista aos 25 anos, após duas amigas comentarem sobre a possibilidade de ela estar no espectro. Além da dificuldade em interagir, o hiperfoco e a hipersensibilidade sensorial também estão presentes na vida da Aline. Sons de cigarras e grilos, por exemplo, fazem com que ela se sinta sobrecarregada, pois o sistema auditivo é sensível tanto a frequência quanto a amplitude de um som.
Aline Provensi cria tirinhas que ilustram o cotidiano de pessoas autistas. As obras são publicadas no perfil @tirinhasdasara no Instagram.
Gênero e raça no autismo
O índice de diagnóstico tardio é maior em mulheres. Para o neurologista Matheus Trilico, isso acontece porque as mulheres conseguem mascarar ou camuflar mais os sinais de autismo do que os homens. “As mulheres autistas adultas possuem considerável capacidade de aprender o que é socialmente aceito e imitar ou adaptar suas atitudes, o que muitas vezes atrasa ou evita o diagnóstico correto”, explica.
Luciana Viegas parafraseia a filósofa Angela Davis ao dizer que o autismo tem gênero, raça e classe. Luciana é fundadora do Movimento Vidas Negras com Deficiência Importam e compartilha informações no perfil Uma Mãe Preta Autista Falando no Instagram. Sob uma perspectiva da neurodiversidade - termo criado pela socióloga Judy Singer - a professora defende que cada mente tem sua singularidade e que é necessário olhar para as vivências de cada pessoa também. Como uma mulher negra e autista, ela conta que o racismo e o capacitismo se misturam.
A importância do diagnóstico
"Mas você já viveu tudo isso, por que precisa de um diagnóstico agora?", foi o que o professor Guilherme ouviu de uma médica. Tanto para o Guilherme, como para a Luciana e a Aline, o diagnóstico foi um ponto de partida para o autoconhecimento. "O diagnóstico vem para ajudar a saber lidar e não negar comportamentos atípicos vistos como errados", enfatiza a psicóloga Aline Provensi.
Só depois de ser diagnosticado é possível desenvolver técnicas e adaptações, “a partir daquilo que te afeta você consegue buscar alternativas, como olhar para boca ou testa”, conta Guilherme ao citar a dificuldade que sente de olhar nos olhos. Sem o diagnóstico, é comum que pessoas que estão dentro do espectro camuflem as características do transtorno.
Reproduzir comportamentos vistos em filmes e ficar em frente ao espelho por muito tempo ensaiando falas ou expressões são exemplos de estratégias da chamada camuflagem social e que causa sofrimento psíquico. Luciana e Guilherme reconhecem, portanto, que o diagnóstico foi libertador e que vivem muito melhor depois dele.
“Lugar de autista é em todo lugar”
2 de abril é o Dia Mundial de Conscientização do Autismo. A data foi criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) com o objetivo de levar informação acerca do espectro. O tema da campanha nacional de conscientização deste ano é “Lugar de autista é em todo lugar”. Dados do estudo Autism and Developmental Disabilities Monitoring (ADDM) mostram que uma a cada 44 crianças na faixa etária de 8 anos tem algum grau de autismo. Segundo o portal brasileiro Canal Autismo, ao trazer esta proporção para a população do país, o número chega a 4,8 milhões.
Segundo o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), o autismo é um transtorno de neurodesenvolvimento e possui três níveis, que vão sendo classificados de acordo com a maior ou menor necessidade de suporte.
As causas do TEA ainda não são totalmente conhecidas, mas a explicação mais aceita é a interação de fatores genéticos e ambientais. Em 2019, foi sancionada a Lei nº 13.861, que determina a inclusão de perguntas sobre autismo no Censo do IBGE de 2022.
Para Lucinete Andrade, diretora da Associação Brasileira de Autismo, Comportamento e Intervenção (Abraci-DF), ter dados mais precisos é fundamental para criar políticas públicas.
O símbolo do Transtorno do Espectro Autista
Ao longo dos anos, diversos símbolos foram criados para representar o Transtorno do Espectro Autista, como a cor azul, quebra-cabeça e fita de conscientização. No entanto, o símbolo do infinito colorido pelas cores do arco-íris é o mais aceito pelos autistas, pois foi criado por eles e representa a neurodiversidade, sendo um contraponto ao quebra-cabeça, que sugere a dificuldade de compreender as pessoas do espectro.
*Estagiária sob supervisão de Mariana Niederauer
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