O cenário climático nunca foi pintado com cores tão sombrias. Divulgado na semana passada, o relatório do grupo de trabalho II do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) é o mais assustador até agora, segundo o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres. Se o documento evidencia os impactos negativos do aquecimento global em ecossistemas e, especialmente, na humanidade, o próximo, esperado para abril, vai apontar o que se pode fazer e o que, de fato, o mundo está fazendo para tentar reverter os estragos que vêm se acumulando desde o início da era industrial.
Com o tema da mitigação, o relatório vai mostrar o que se tem feito, em várias frentes, para evitar e reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Embora o conceito seja simples, colocá-lo em prática não é fácil. As medidas incluem, em especial, a transição do uso de combustíveis fósseis para energias renováveis, acabar com o desmatamento e restaurar sistemas impactados. O principal instrumento para garantir que isso ocorra é o Acordo de Paris, com o qual 195 países se comprometeram em 2015. Porém, mesmo a meta mais ambiciosa — limitar o aquecimento do planeta a 1ºC acima dos níveis pré-industriais até o fim do século — já parece insuficiente, segundo estudos citados pelo IPCC.
Desde o histórico acordo da capital francesa, porém, o monitoramento das emissões mostra resultados decepcionantes. Os últimos sete anos bateram recorde de calor e, em vez de redução, se observou aumento da produção de gases de efeito estufa — em especial, o CO2 e o metano. Este último, que fica mais tempo na atmosfera que o dióxido de carbono, registrou crescimento entre 2020 e 2021, segundo um relatório do Serviço de Monitoramento do Clima da União Europeia, chegando ao dobro do registrado duas décadas antes.
Em novembro, pesquisadores do Projeto Carbono Global divulgaram outro documento mostrando que as emissões de CO2 dos principais setores poluentes — energia e indústria — aumentaram 4,9%, depois de uma queda de 5,4% alcançada em 2020. A redução anterior não parece resultado de políticas de mitigação, mas, provavelmente, está associada ao lockdown devido à pandemia de covid-19, observou o relatório. O Brasil tem apresentado um desempenho ainda mais desfavorável. Enquanto o restante do mundo passou por uma retração das emissões há dois anos, o país registrou uma elevação de 9,5%, puxada, especialmente, pelo aumento do desmatamento.
"O impacto (das emissões) em eventos extremos em muitas partes diferentes do mundo é dramático. Devemos olhar para os eventos recordes de 2021, como a onda de calor no Canadá e as inundações na Alemanha, como um soco na cara para fazer os políticos e o público acordarem para a urgência da emergência climática. Os contínuos aumentos nas concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera indicam que as causas subjacentes ainda precisam ser abordadas", critica Rowan Sutton, do Centro Nacional de Ciência Atmosférica da Universidade de Reading, na Inglaterra. União Europeia, Índia e China puxaram para cima as emissões globais da indústria e dos transportes.
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Combustíveis fósseis
Um grande desafio em relação a esses dois setores é que ambos são extremamente dependentes de combustíveis fósseis, os grandes vilões do aquecimento global. Por isso, o Acordo de Paris insiste que as ações mitigatórias, necessariamente, incluam a transição do modelo energético. Houve avanços nesse sentido, mas ainda insuficientes, de acordo com o próprio IPCC. Em agosto passado, António Guterres declarou que, diante da informação de que o mundo estará 1,5°C mais quente em 2030, ou seja, 10 anos antes do esperado, era urgente acabar com as usinas de carvão e com os demais combustíveis fósseis.
Na COP26, a conferência climática da ONU, em dezembro, 77 países assinaram um acordo para eliminação gradual do carvão no setor energético. A queima do mineral responde por 37% da produção mundial de energia. Apesar de o compromisso ter sido considerado um avanço, a não adesão dos principais poluidores — China e EUA — e de importantes mercados consumidores — Austrália, Índia e Chile — limita significativamente a ação mitigatória.
Jeffery Kargel, cientista sênior do Instituto de Pesquisa Planetária de Tucson, no Arizona, se diz pessimista em relação a possíveis avanços na eliminação dos combustíveis fósseis. "A situação geopolítica global e a política interna de muitos países podem não responder à necessidade urgente (de corte de emissões)", diz. "O acordo final da COP26 fala em uma 'redução gradual' da produção e uso de carvão, em vez do que previa o texto preliminar anterior, que pedia uma 'eliminação gradual', uma mudança forçada pela Índia. Então, parece que a Índia não vê a mudança climática como uma ameaça existencial", critica. Kargel lembra que, "provavelmente, não há país que esteja sendo mais afetado pelas mudanças climáticas do que a Índia", ressaltando o paradoxo da postura do país.
A versão final do próximo relatório do IPCC foi distribuída no fim do ano para os governos, que puderam sugerir alterações no texto, a serem discutidas em uma plenária, em março. "Nossos cientistas trabalharam incansavelmente para entregar esse relatório por meio de uma avaliação robusta de evidências científicas. O relatório informará os formuladores de políticas em todo o mundo sobre os caminhos para soluções e oportunidades disponíveis para enfrentar as mudanças climáticas", disse Jim Skea, copresidente do Grupo de Trabalho III.