Deixar um emprego do qual ela não gosta, mudar-se de uma cidade que não atende mais às suas necessidades ou terminar um relacionamento com alguém que ela não ama mais - nas últimas décadas, a sociedade ocidental vem avançando na defesa de mulheres que fazem essas escolhas empoderadoras. Mas e se a escolha for abandonar seus filhos?
Apesar da melhoria da igualdade de gênero, as mães que tomam a difícil decisão de viver longe de seus filhos não costumam ser nada elogiadas.
"Mesmo se os dois pais estiverem fazendo um trabalho brilhante e criando filhos felizes e saudáveis, [se] eventualmente as crianças viverem longe da mãe, a mulher ainda é difamada", segundo Melissa, que mora a uma hora e meia de carro dos seus dois filhos e administra um grupo de apoio online para mulheres em situações similares.
"[Essas] mães são consideradas anormais, como se algo lá no fundo, dentro delas, estivesse quebrado", afirma ela.
A recente produção da Netflix A Filha Perdida lançou uma luz sobre esse tipo de reação às mães que vivem separadas de seus filhos. O filme, baseado no romance homônimo da escritora italiana Elena Ferrante, concentra-se na atriz britânica Olivia Colman no papel de uma mãe que deixa seus filhos com o marido por três anos para buscar seus objetivos profissionais. Ela e outras pessoas consideram que sua decisão é egoísta, mas o mesmo não acontece no filme com um pai (interpretado pelo ator norte-americano Ed Harris), que também deixou seus filhos, aparentemente sem muito julgamento.
Embora, na vida real, pais de todos os gêneros venham abandonando seus filhos há séculos, existem episódios que indicam que a quantidade de mães que tomam essa decisão pode estar aumentando.
Melissa afirma que a quantidade de pessoas que participam do grupo de apoio online que ela administra está na casa das centenas e em crescimento constante. E terapeutas como Reennee Singh, porta-voz do Conselho de Psicoterapia do Reino Unido (UKCP, na sigla em inglês), afirma que eles vêm notando "leve aumento" da quantidade de mães decidindo abrir mão de viver com seus filhos.
Dados do Reino Unido e dos EUA também indicam aumento da proporção de lares com apenas um dos pais, mas as informações não diferenciam as famílias onde as crianças ainda passam parte significativa do tempo com suas mães ou não - ou como foram decididos os esquemas de criação dos filhos.
Sejam quais forem os números exatos, a questão das mulheres (e não os homens) deixarem a unidade familiar ainda levanta muito debate na cultura ocidental. Uma das causas de tensão do filme A Filha Perdida, por exemplo, é a questão indicada pelo título: se a filha foi abandonada pela mãe ou se, ao contrário, a mãe que abandona suas filhas é a "perdida", evidenciando que a reação emocional a esse tipo de comportamento ainda é profunda.
Isso pode parecer surpreendente de muitas formas, considerando a onda de apoio da sociedade e da imprensa à igualdade de gênero em outros setores da sociedade.
"Nós aceitamos muito mais as famílias misturadas e pais do mesmo sexo que as mães que trabalham e cuidam dos filhos à distância", segundo Tom Buchanan, professor de sociologia da Universidade Mount Royal em Calgary, no Canadá. Para ele, "existe um atraso cultural". E os especialistas dizem que isso pode não mudar em breve.
As razões para sair de casa
Acadêmicos e terapeutas que acompanham o "leve aumento" das mães que decidem viver longe de seus filhos afirmam que existe um amplo espectro de razões para que isso aconteça.
Algumas saem para assumir empregos, atribuições ou oportunidades de estudo em cidades diferentes, mantendo seu relacionamento com o pai das crianças ou depois de uma separação. "Os tempos mudaram o suficiente para que as mulheres se sintam mais confortáveis e tenham o direito de buscar suas próprias carreiras, seus próprios interesses", afirma Singh, "mesmo que isso signifique viver longe da casa [da família]."
Outras mulheres concluem que é preferível que seus filhos morem com o pai depois de uma separação, por razões práticas ou financeiras.
"As crianças viviam em uma casa agradável em uma fazenda no interior, estavam em boas escolas e tinham ótimos amigos", conta Melissa. "Eu não sabia como conseguiria sustentá-los." Ao deixar seus filhos com o pai, ela conseguiu refazer sua carreira como freelancer na imprensa e mudar para um bairro mais barato, perto da sua família estendida.
"E eu também fiquei muito fragilizada com o que aconteceu no casamento e precisava de tempo para me recuperar", ela conta.
Em outros pontos do espectro de escolhas, encontram-se as mães que saem de casa para terem um estilo de vida ou relacionamento diferente.
"Eu me sentia presa, completamente presa em uma situação", afirma Katy, professora que deixou seus cinco filhos com o pai em 2018 e mudou-se para outro lugar na Europa. "Eu me casei com 22 anos, tive meu primeiro filho com 25 e depois foi 'bum, bum, bum' - um filho depois do outro. Eles eram o que eu queria na época, mas acho que não conseguia fazer nada que fosse para mim, na verdade."
E, no extremo do espectro de escolhas, estão as mães que fogem de relacionamentos tóxicos. Para esse grupo, deixar seus filhos para trás pode ser uma espécie de último recurso para superar sérias questões de saúde mental e seguir adiante com suas vidas.
Este foi o caso de Natalie, da Austrália, que sofreu depressão profunda quando vivia no exterior com seu ex-marido. Ela disse que a dinâmica entre eles não era saudável, mas que ele cuidava muito bem dos filhos, de forma que ela acabou voltando para o país natal sem eles.
"Meus filhos tinham um pai e uma família estendida que os amavam, rotinas e um lar. Deixá-los era salvar a mim mesma", ela conta. "Quando você chega ao fundo do poço, precisa ser criativa."
Singh acredita que promover a consciência do público sobre o bem-estar sustenta as decisões das mães de deixar o ninho da família - ao contrário das gerações anteriores, quando as mulheres muitas vezes sentiam que precisavam cuidar da dinâmica doméstica existente. Existem hoje livros e podcasts de autoajuda sobre separações ou autocuidado, por exemplo, que podem oferecer conforto e aprovação para as mães que tomaram a difícil decisão de viver longe dos seus filhos.
Mas Singh alerta que parte dessa literatura somente existe devido aos estereótipos de maternidade que ainda existem. E ela se questiona como algumas mulheres podem sentir que precisam usar discursos sobre bem-estar "para garantir ou legitimar o que estão fazendo".
"Se a sociedade fosse mais justa e igualitária, talvez elas não precisassem depender tanto da literatura para se sentirem confortáveis com as decisões que tomaram. Eu tento ajudar as mulheres a se tornarem mais fortes e fundamentadas em suas escolhas e, sabe, penso, 'bem, a sociedade pode dizer 'o que seja', mas é isso que eu quero fazer neste momento'", argumenta ela. Às vezes, esta opção é a única que se apresenta para elas... [então é] também questão apenas de ajudá-las, fazendo com que elas possam sair com a sensação de que está tudo bem."
Estigma persistente
A liberdade de sair de casa não fez com que as mulheres ficassem livres de julgamentos. Elas ainda tendem a enfrentar reações negativas dos amigos, da família e da sociedade em geral pela decisão não convencional de viver longe dos seus filhos, sejam quais forem as razões por trás dessa decisão - especialmente no Ocidente.
"O principal tema no grupo [online] é como as mulheres ficaram surpresas com as restrições que a sociedade [ainda] esperava delas", segundo Melissa. Ela conta que até participantes que moram longe dos seus filhos para buscar caminhos profissionais no exército ou estudos de pós-graduação compartilham experiências de difamação pelas suas escolhas.
Melissa conta que é frequente que novos conhecidos perguntem às participantes do grupo: "O que você quer dizer, seus filhos não moram com você? Que tipo de mãe não quer estar com seus próprios filhos?".
"Como se fosse uma escolha simples que apenas a mãe pudesse fazer. Como se os pais não tivessem influência, voz, nem responsabilidade nenhuma", diz.
Segundo Singh, isso se deve, em grande parte, aos discursos e expectativas sobre a maternidade não terem se alterado na mesma velocidade do progresso das mulheres em outras áreas. Em outras palavras, ainda se espera que as mulheres desempenhem o papel de criadora dos filhos, independentemente de outras circunstâncias externas.
"Existe ainda um certo estigma ligado às mulheres, como se estivessem abandonando suas tarefas e responsabilidades", segundo ela. "Tem muito a ver com história, ideias culturais e relações entre os gêneros."
Ela indica que esta narrativa é particularmente comum nas culturas individualistas do Ocidente, ao contrário das sociedades mais coletivas. "Nas Filipinas ou na Índia, é bastante comum que as mulheres saiam para ganhar dinheiro em outros países e o enviem para casa, enquanto as crianças estão sendo criadas pela família estendida ou pelos avós."
Nessas culturas ocidentais, o estigma muitas vezes é ainda mais forte para as mulheres que deixam o ninho familiar para buscar um relacionamento ou estilo de vida específico, que para aquelas que saem por razões práticas ou profissionais. Katy afirma que muitos dos seus parentes não falaram com ela por meses, embora a decisão de manter seus filhos na casa da família em vez de sair com ela tivesse sido, segundo ela, tomada de comum acordo com o pai das crianças.
"Os homens podem fazer isso, não ter contato com a criança e é aceitável", segundo Katy. "Mas, quando uma mulher faz isso - e eu ainda tenho contato com meus filhos -, as pessoas acham que sou uma mãe ruim e os abandonei. Pensei em fazer o melhor para eles", relata ela, indicando que, se ela tivesse ficado, sua exaustão e infelicidade só teriam se ampliado. "Eu não percebi na época todas as consequências e todos os julgamentos que iria enfrentar."
Quatro anos após sua mudança, Katy conta que alguns amigos e familiares ainda a veem como "uma mãe ruim" e culpam sua decisão de sair de casa por qualquer dificuldade sofrida pelas crianças.
E compartilhar sua história com novos amigos também não a ajudou a reduzir a pressão. Muitas pessoas próximas se distanciaram dela depois que souberam do seu passado e, por isso, ela agora evita falar sobre seus filhos.
"É difícil porque todo dia você pensa 'sim, o que eu fiz realmente exigiu muita coragem'; até que alguém faz um comentário e leva você novamente a pensar que é a pior pessoa do mundo", relata ela.
Melissa conta que as mulheres que admitem que o abuso doméstico foi um fator para que elas saíssem - mesmo acreditando que seu antigo parceiro não machucaria as crianças - enfrentam o julgamento "talvez mais cruel" das pessoas.
"Na violência doméstica, as mulheres raramente saem vivas, que dirá com sua saúde mental intacta", ela conta. Ainda assim, essas mulheres ainda ouvem de estranhos e conhecidos perguntas como "como você pôde fazer isso?" ou "as crianças estão bem com isso?" "Muito raramente as pessoas perguntam 'como você está?' ou 'você está bem?'", conta Melissa.
As visões de paternidade aumentam os encargos das mães
Buchanan concorda que, historicamente, os pais que deixam a casa da família foram muito mais aceitos pela sociedade e pela cultura popular do que as mães. Ele menciona a música do veterano cantor norte-americano Bruce Springsteen intitulada Hungry Heart ("Coração faminto", em tradução livre). Sua letra começa dizendo "tenho esposa e filhos em Baltimore, Jack, saí para dar uma volta e nunca mais voltei".
Parte dessa aceitação deve-se ao estereótipo social dos homens e das mulheres. Os pais são tradicionalmente considerados cuidadores menos capazes do que as mães. E há também o valor atribuído ao trabalho doméstico sem pagamento, como cuidar das crianças, em comparação com empregos assalariados, argumenta Buchanan.
Tudo isso alimentou a narrativa de que é mais aceitável que os homens saiam de casa se contribuírem financeiramente, enquanto as mulheres são vistas como abandonando as tarefas familiares.
"Os pais costumam reconhecer apenas o trabalho profissional [pago] como 'trabalho'. E, até que isso mude, acho que você verá muita pressão sobre as mulheres", argumenta ele. "Os pais precisam abraçar, abordar e desafiar o estigma de que eles são apenas 'provedores', não necessariamente 'pais'."
Mas Buchanan acredita que, apesar de tudo isso, os pais que saem de casa hoje em dia "não são totalmente desestigmatizados" e "provavelmente sua reputação não é boa". Mas ele aceita que existe um "nível diferente de estigma" para as mulheres que deixam suas famílias nesse tipo de circunstâncias. "Quando isso acontece com as mães, o problema é enorme e se torna uma questão de gênero."
Singh acrescenta que os estigmas sociais podem até influenciar a forma em que as crianças reagem à decisão da mãe de mudar-se da casa da família. Ela trabalhou com muitos clientes adultos que presenciaram o crescimento da infidelidade dos pais e conta que as pessoas tendem a julgar as mães que saem de casa com mais severidade que os pais: "É difícil perdoá-las, mesmo na idade adulta".
Administrando à distância
Natalie descreve sua relação com seus filhos como "muito próxima" e afirma que eles se falam várias vezes por semana, trocam mensagens de texto regularmente e fazem visitas presenciais entre si.
"A qualidade do tempo que temos quando estamos juntos é mágica e normal. Nós nos reunimos com muita alegria e estou também presente para cuidar dos dramas e da lição de casa", relata ela.
Já Katy conta que enfrentou dificuldades para manter contato regular com alguns dos seus cinco filhos e mantém uma relação particularmente frágil com sua filha mais velha. Mas, embora a pandemia tenha dificultado as visitas das crianças, ela afirma que conseguiu oferecer a elas o tipo de tempo de família de qualidade que era difícil quando ela equilibrava a atenção em casa e os horários de trabalho antissociais.
"Nós vamos à praia, saímos, fazemos piqueniques juntos no parque... esse tipo de coisas", segundo Katy. "Eu não me arrependo da minha decisão. Todo o tempo, eu fiz o que achei que tinha que fazer. Gostaria que, um dia, meus filhos crescessem, olhassem para mim e pensassem 'bem, minha mãe não estava feliz, mas ela não aceitou a situação. Ela fez alguma coisa a respeito.'"
No grupo de apoio online, muitas mulheres compartilham regularmente sentimentos de culpa, isolamento social e ostracismo, segundo Melissa, porque é difícil discutir o que elas estão passando com outras pessoas.
"A observação mais comum das novas participantes do nosso grupo é como elas são incrivelmente solitárias. Elas dizem que descobrir o nosso grupo ajuda porque elas se sentem compreendidas e não demonizadas pelas suas circunstâncias", segundo ela. Melissa acredita que os comportamentos mais amplos da sociedade precisam mudar, com a melhor compreensão de que "as mulheres que saem [de casa]... amam seus filhos tanto quanto as mães que vivem vidas mais tradicionais".
Uma sociedade mais acolhedora?
Permanece o debate sobre se a sociedade algum dia passará a aceitar melhor as mães que vivem longe dos seus filhos.
Tom Buchanan acredita que as coisas irão melhorar, mas apenas em algumas circunstâncias. "No caso de mudanças orientadas à carreira, acho que é algo que iremos superar, em termos de estigmatização", segundo ele. Ele argumenta que este será um efeito colateral de um aumento mais geral da igualdade de gênero no lar e no local de trabalho, com os pais cada vez mais envolvidos em casa e mais mulheres em posições de liderança.
"[Mas] sair da família apenas por querer buscar algo diferente - acho que sempre será estigmatizado", ressalta ele.
Melissa, a administradora do grupo de apoio, concorda: "Não acho que as coisas mudarão muito no futuro". Dez anos depois que se mudou da casa da família, ela conta que viu pouco progresso no comportamento social com relação às mães que vivem separadas, como ela.
Mas Natalie tem mais esperanças de que as mulheres que saem de casa por motivos não profissionais terão suas escolhas mais "normalizadas" no futuro, "com educação e consciência suficientes". Para que isso aconteça, ela afirma que a sociedade também precisa ser mais aberta à ideia de que os pais são cuidadores igualmente capazes.
Esse tipo de mudança, segundo Reennee Singh, também precisa ser acompanhada de uma aceitação mais ampla e respeitosa de todo o leque de opções abertas para as mulheres modernas que trabalham, além dos modelos tradicionais das funções domésticas.
"Seja tendo filhos com mais idade, não tendo filhos, tendo filhos para que outra pessoa seja o cuidador principal deles, existe muito trabalho à frente para nós, mulheres, apenas nos sentirmos mais confortáveis com o fato de que existem escolhas disponíveis atualmente", argumenta ela. "Não há problema em escolher algo um pouco diferente... mas cada uma dessas escolhas tem um custo."
Os sobrenomes de Melissa, Katy e Natalie foram omitidos para proteger a privacidade delas e de suas famílias.
Leia esta reportagem na versão original em inglês no site BBC Worklife.
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