Em 1982, uma estranha doença que atacava o sistema imunológico começava a causar vítimas em todo o mundo, intrigando a comunidade médica. Luc Montagnier, um bem-sucedido pesquisador de retrovírus — vírus de RNA de fita simples — recebeu a ligação de uma ex-aluna o convidando a se juntar a um pequeno grupo que tentava identificar o micro-organismo que poderia ter causado inchaço em um linfonodo no pescoço de um paciente com sinais precoces do mal ainda desconhecido.
No ano seguinte, Montagnier relatava a descoberta do HIV, o vírus da imunodeficiência humana, causador da Aids, pela qual foi laureado com um prêmio Nobel. Quatro décadas depois, foi anunciada a morte do cientista, aos 89 anos. Ele morreu na terça-feira, mas apenas ontem o prefeito de Neuilly-sur-Seine comunicou o óbito, ocorrido no hospital da pequena cidade próxima a Paris.
A descoberta do virologista francês e de seus colegas de equipe foi fundamental para que, hoje, pessoas com HIV possam levar uma vida normal, com tratamento antiviral. O grande feito de Montagnier, nascido em 1932 em Chabris, na França, porém, foi se apagando entre as muitas polêmicas com as quais se envolveu. Além de defender a homeopatia, considerada pseudociência pela comunidade médica, ele se juntou ao movimento antivacina e criticou a imunização em massa contra a covid-19, o que lhe rendeu muitas inimizades no meio científico.
O pesquisador já defendeu que o autismo é causado por micróbios. Também afirmou, sem qualquer evidência, que o Sars-CoV-2 foi criado artificialmente em Wuhan, na China, durante uma tentativa de se descobrir uma vacina para Aids. Desde a quarta-feira, circulavam notícias sobre a morte de Montagnier, mas a família não quis falar com a imprensa, provavelmente devido às polêmicas recentes com as quais se envolveu. A causa da morte não foi revelada.
"Perdemos um homem cuja originalidade, independência e descobertas sobre o RNA permitiram a criação do laboratório que isolou e identificou o vírus da Aids", tuitou o tão controverso quanto Didier Raoult, lamentando a morte do colega. O microbiologista francês foi apelidado de Dr. Cloroquina por defender o uso do medicamento como "tratamento precoce" para covid, com base em pesquisas de metodologia duvidosa.
Em nota, uma das mais importantes organizações não governamentais francesas de luta contra a Aids se manifestou sobre o óbito. "Hoje, elogiamos o papel decisivo de Luc Montagnier na descoberta conjunta do HIV. Esse foi um passo fundamental, mas, infelizmente, seguido por vários anos durante os quais ele se afastou da ciência, fato que não podemos esconder", diz o comunicado. A única reação imediata do governo de Emmanuel Macron foi por meio da ministra da Pesquisa, Frederique Vidal, que se disse "comovida" e ofereceu condolências à família de Montaigne, sem mencionar suas recentes posições anticientíficas.
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"Vocação"
Nascido em 18 de agosto de 1932, Montagnier estudou medicina em Poitiers e Paris e fez pesquisas na Grã-Bretanha. Em 1972, criou um instituto especializado em retrovírus e oncovírus (causadores de câncer) dentro do Instituto Pasteur. Em uma autobiografia publicada no site do Prêmio Nobel, o cientista contou que a primeira descrição do RNA viral infeccioso do vírus do mosaico do tabaco, em 1957, influenciou sua carreira. "A descoberta determinou minha vocação: tornar-me virologista usando a abordagem moderna da biologia molecular."
Montagnier começou pesquisando o vírus da febre aftosa e, então, no laboratório do virologista Kingsley Sanders, na Inglaterra, identificou, pela primeira vez, um RNA infeccioso de fita dupla atacado pelo vírus da encefalomiocardite murina. "Isso demonstrou que o RNA pode se replicar como o DNA, fazendo uma fita complementar de pares de bases", contou. Esse é o mecanismo de ação dos retrovírus, família à qual o HIV pertence.
Na autobiografia, o cientista detalha a descoberta do vírus da Aids. "Logo após o isolamento do vírus, meus colegas de trabalho e eu pudemos mostrar que ele não estava imunologicamente relacionado ao HTLV e, na microscopia eletrônica, era muito diferente das partículas virais do HTLV", contou. Até então, os médicos e pesquisadores achavam que a nova doença estava sendo causada pelo vírus linfotrópico de células T humanas (HTLV).
"Minha tarefa, agora, era organizar uma equipe de pesquisadores para acumular evidências de que esse novo vírus era, de fato, a causa da Aids. Foi um período emocionante, pois todos os sábados de manhã, quando tínhamos uma reunião em meu escritório, novos dados eram trazidos por meus associados, favorecendo o papel causador do vírus", relatou o cientista.
"Anticientífico"
Depois de isolar o HIV, Montagnier cofundou a Fundação Mundial de Pesquisa e Prevenção de Aids e dirigiu o Programa de Colaboração Internacional Viral. Chegou a receber mais de 20 prêmios, incluindo o Nobel, em 2008. De 1991 a 1997, chefiou um departamento de Aids e retrovírus no Institute Pasteur e depois lecionou no Queens College, em Nova York, até 2001.
Nos últimos anos, passou a ser mais conhecido pelas declarações polêmicas, como a de que bactérias patogênicas emitem ondas de rádio, e chegou a dizer que havia encontrado a "cura" do autismo — que sequer é uma doença, mas um conjunto de sintomas. Críticos passaram a dizer que ele havia sido vítima da "enfermidade Nobel", uma brincadeira segundo a qual alguns laureados com o prêmio acabam desenvolvendo ideias anticientíficas.
As polêmicas mais recentes foram em relação à pandemia de covid-19. Montagnier chegou a dizer que havia "elementos do HIV e da malária no genoma do coronavírus", o que foi imediatamente rejeitado pelos colegas. Em várias entrevistas, ele se posicionou contrário à vacina contra o Sars-CoV-2. Montagnier era casado e tinha três filhos.