Antes de se tornar um procedimento comum, o transplante inédito realizado por médicos da Universidade de Medicina de Maryland, nos Estados Unidos, deverá ser avaliado cuidadosamente a longo prazo. Considerada um marco, a cirurgia na qual um homem de 57 anos recebeu o coração geneticamente modificado de um porco passou pelo primeiro teste — o da rejeição em até 72 horas. Porém especialistas ressaltam que há uma série de intercorrências que podem inviabilizar o procedimento, ao menos num futuro próximo.
David Bennet sofria de doença cardíaca terminal e, devido ao estado avançado da condição, não era elegível para um transplante tradicional. O morador de Maryland passou mais de seis semanas hospitalizado e, para ser mantido vivo, dependia de uma máquina chamada de oxigenação por membrana extracorpórea. Até que, na véspera do ano-novo, a agência de regulação sanitária dos EUA, a Food and Drug Administration (FDA), autorizou a cirurgia experimental. "Era morrer ou fazer esse transplante. Eu quero viver. Eu sei que é um tiro no escuro, mas é minha última escolha", disse Bennett, por meio da assessoria de imprensa da universidade.
O transplante foi realizado na sexta-feira, mas os médicos esperaram o período crítico de 72 horas para anunciar publicamente o procedimento. Essa foi a primeira vez em que o coração de um animal geneticamente modificado foi implantado em um humano sem ter sido imediatamente rejeitado. Se a longo prazo o paciente não sofrer complicações que coloquem sua vida em risco, a expectativa dos médicos é de que outras pessoas em situação semelhante possam ser beneficiadas.
O chamado xenotransplante — transplante de um animal para outro — é, há muito tempo, objeto de estudo de Muhammad M. Mohiuddin, professor de cirurgia da Universidade de Medicina de Maryland que, há cinco anos, instituiu o programa de xenotransplante cardíaco na instituição. "Esse é o culminar de anos de pesquisas altamente complicadas para aprimorar essa técnica em animais com tempos de sobrevivência que ultrapassaram nove meses", contou, em nota. "O procedimento bem-sucedido forneceu informações valiosas para ajudar a comunidade médica a melhorar esse método potencialmente salvador de vidas em futuros pacientes."
Os primeiros xenotransplantes em humanos foram realizados na década de 1980, mas abandonados com a morte de Stephanie Fae Beauclair. A menina, que tinha uma doença cardiológica letal congênita, morreu um mês após receber o coração de um babuíno. Há tempos, porém, são usadas válvulas cardíacas de porcos, com sucesso, apontando a possibilidade de se utilizar o órgão inteiro.
"A ambição de utilizar o coração de porco imunologicamente modificado para transplante não é nova", explica Francis Wells, cirurgião cardíaco britânico e consultor do Hospital Papworth, considerado um dos cinco melhores especialistas do mundo na correção de válvulas cardíacas. "Há mais de 25 anos, porcos foram geneticamente criados na Universidade de Cambridge para modular a agressividade da rejeição. Isso foi alcançado com o trabalho liderado pelo professor David White. Corações que foram transplantados em macacos funcionaram com sucesso no curto prazo, mas havia uma grande preocupação com doenças relacionadas a príons das células do porco como resultado da imunossupressão. Então, o programa foi interrompido", diz.
Wells diz que é preciso acompanhar o caso de Maryland a médio e longo prazo antes de o procedimento causar entusiasmo. "Esperamos com interesse para saber como esse paciente corajoso progride. Talvez seja muito cedo para fazer tal anúncio ao mundo", pondera.
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Antirrejeição
O coração recebido por David Bennet foi fornecido pela Revicor, uma companhia de medicina regenerativa. O órgão foi modificado, com a supressão de três genes que provocam rejeição imediata. Além disso, os cientistas inseriram seis genes humanos responsáveis pela aceitação imunológica do receptor no genoma do animal. Por fim, um gene adicional foi eliminado no doador para evitar o crescimento excessivo do tecido cardíaco.
Além disso, os médicos adicionaram um novo composto experimental às drogas antirrejeição convencionais, para evitar que o sistema imunológico ataque o coração. Bartley P. Griffith, cirurgião que realizou o procedimento, reconhece que há complicações em potencial, mas lembra que a cirurgia poderá, se bem-sucedida, ajudar a resolver a escassez de órgãos para transplante. "Simplesmente não há corações humanos de doadores suficientes disponíveis para atender à longa lista de potenciais receptores. Estamos procedendo com cautela, mas também estamos otimistas de que essa cirurgia inédita no mundo fornecerá uma nova opção importante para os pacientes no futuro", disse, em nota.