Ao menos 47 mil mortes por malária no ano passado podem entrar na conta da pandemia da covid-19. Essa doença, que afeta principalmente países e regiões com baixo índice de desenvolvimento humano, é um dos maiores desafios de saúde pública da África Subsaariana e, desde o fim da década passada, o progresso observado a partir dos anos 2000 estagnou. Com número de casos e óbitos crescendo ano a ano, as estatísticas foram ainda mais dramáticas em 2020.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2020, houve 241 milhões de registros da enfermidade — 14 milhões a mais que em 2019 —, e 627 mil mortes. Um acréscimo de 69 mil comparado ao ano anterior. Dois terços dos óbitos, de acordo com o organismo das Nações Unidas, podem ser atribuídos à interrupção nos serviços de prevenção, diagnóstico e tratamento da doença devido à pandemia da covid-19.
"Por volta de 2017, havia sinais de que os ganhos fenomenais obtidos desde 2000 — incluindo redução de 27% na incidência de casos de malária e redução de quase 51% na taxa de mortalidade por malária — estavam parando", disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS. "Mesmo antes da pandemia, os ganhos globais contra a malária haviam se estabilizado. Agora, precisamos aproveitar essa mesma energia (empregada no combate à covid-19) e esse mesmo compromisso para reverter os contratempos causados pela pandemia e acelerar o progresso contra a malária."
A malária é considerada pela OMS uma doença tropical negligenciada (DTN), categoria de enfermidades que afetam principalmente países pobres e em desenvolvimento e para as quais há pouca pesquisa de novos tratamentos e vacinas. Apesar de os primeiros registros remontarem a milênios — um dos mais antigos data de 2,7 mil anos antes de Cristo, na China (leia mais nesta página) —, os principais medicamentos no mercado têm mais de meio século.
Por isso, a aprovação, em outubro, da vacina mosquirix, o primeiro imunizante para malária, é considerada uma conquista substancial na história das DTNs. "A malária é uma das grandes doenças negligenciadas, com acometimento e morte de milhões de pessoas por ano. Então, o desenvolvimento da vacina foi um grande marco no combate a esse tipo de doença, inclusive com a recomendação formal da OMS do uso generalizado, especialmente para crianças, na África Subsaariana", diz a infectologista Mariana Vasconcelos, da Fundação São Francisco Xavier, em Minas Gerais. A médica lembra que estudos apontaram redução de 35% na forma grave da malária em pacientes imunizados.
"A malária ainda é a principal causa de doença infantil e morte na África Subsaariana. Mais de 260 mil crianças africanas com menos de 5 anos morrem dessa doença anualmente", diz a infectologista Clarisse Lisboa, diretora da Sociedade de Infectologia do DF e médica da Secretaria de Saúde do DF. "Os estudos para o desenvolvimento da vacina se iniciaram há algumas décadas, mas o baixo investimento e as particularidades relacionadas ao ciclo do Plasmodium no ser humano dificultaram esse projeto", diz.
A mosquirix foi desenvolvida pelo laboratório britânico GlaxoSmithKline (GSK), depois de três décadas e meia de pesquisa, e confere proteção contra o Plasmodium falciparum, um dos parasitas que causam a malária. No Brasil, onde 99% dos casos concentram-se na Amazônia Legal, predomina o Plasmodium vivax, para o qual a vacina não tem indicação.
Eficácia recorde
Além da aprovação da mosquirix, outro avanço em direção a uma vacina segura e eficaz contra a malária foi comemorada por cientistas e médicos neste ano. Trata-se da R21/Matrix-M, desenvolvida na Universidade de Oxford, no Reino Unido. Publicado em abril, um estudo de fase 2 com 450 participantes de 5 a 17 meses em Burkina Faso indicou eficácia de 77% ao longo de um ano de acompanhamento, sem efeitos colaterais graves.
Segundo os pesquisadores, dos mais de 100 imunizantes candidatos à malária que entraram em ensaios clínicos nas últimas décadas, nenhum alcançou tanta eficácia. Atualmente, a equipe testa a R21/Matrix em colaboração com a Novavax e o Serum Institute of India Private, da Índia. A pesquisa, de fase 3, é a última antes de o medicamento entrar no mercado, caso os resultados sejam positivos. Quase 5 mil crianças de 5 a 36 meses, em quatro países africanos, participam do estudo.
"Apesar dos esforços globais contra a malária, muitas vidas ainda são perdidas devido a essa doença, especialmente bebês e crianças pequenas. As vacinas podem mudar isso", diz a cientista Lynsey Bisland, da Wellcome Trust, fundação sem fins lucrativos que ajudou a financiar o estudo de Oxford. "O resultado obtido foi extremamente promissor e mostra a alta eficácia de uma vacina segura, de baixo custo e escalonável, projetada para atingir um grande número de crianças que correm o maior risco de sofrer o impacto devastador da malária. Embora mais estudos sejam necessários, isso marca um passo significativo e emocionante em um desafio crítico de saúde global.