doenças tropicais negligenciadas

Aquecimento global favorece disseminação de doenças transmitidas por insetos

Entre elas, as doenças negligenciadas. Áreas que hoje não são afetadas por enfermidades do tipo podem passar a ser

Paloma Oliveto
postado em 04/01/2022 06:00
 (crédito: Marvin Recinos/AFP)
(crédito: Marvin Recinos/AFP)

Nos planos da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2030, mais de 1 bilhão de pessoas estarão curadas de doenças tropicais negligenciadas, como malária e Chagas. Além disso, enfermidades como tracoma e bouba, que ainda atingem milhares de crianças e adultos, serão eliminadas. Essas são algumas das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, um plano de ação global das Nações Unidas para redução da pobreza e desigualdade.

Porém, o relatório de monitoramento de 2021 da OMS aponta que muitas das metas previstas para o ano anterior não foram cumpridas. Além do desafio de recuperar o tempo perdido — em parte, devido à pandemia de covid-19 —, os planejadores de políticas públicas precisam levar em conta um complicador. Em vez de diminuir, projeções indicam que enfermidades transmitidas por vetores — caso de boa parte das tropicais negligenciadas — vão aumentar devido às mudanças climáticas.

As emissões antropogênicas de gases de efeito estufa fizeram com que a temperatura média global aumentasse 1°C acima dos níveis pré-industriais. Os impactos decorrentes foram profundos, incluindo aumento de calor, diminuição da cobertura de neve e aceleração da elevação do nível do mar. Enquanto algumas áreas do planeta estão mais úmidas, outras ficaram mais secas — ambas, porém, passando por eventos extremos de precipitação.

Esse cenário tende a piorar. Apesar de o Acordo de Paris estabelecer metas para limitar o aumento da temperatura a 2°C até 2100, a avaliação de cientistas climáticos é de que, com o ritmo lento das medidas de redução das emissões de gases de efeito estufa, o planeta pode chegar ao século 22 quatro graus mais quente. Com o calor e as mudanças nos sistemas de chuvas, virão os mosquitos, responsáveis por transmitir doenças como dengue, malária, zika e chicungunnha, entre outras. "A maioria das doenças tropicais negligenciadas tem essa relação direta com o clima pelo fato de serem, muitas vezes, transmitidas por vetores, insetos. Então, a questão climática contribui diretamente. Qualquer desequilíbrio em relação a sol, chuva, umidade favorece a proliferação desses vetores", observa Mariana Vasconcelos, infectologista da Fundação Francisco Xavier, em Minas Gerais.

De acordo com Robert Dubrow, pesquisador do Departamento de Ciências de Saúde Ambiental da Universidade de Yale, nos EUA, o clima pode afetar a dinâmica de transmissão, a disseminação geográfica e o ressurgimento de doenças transmitidas por vetores de diferentes formas. "Além de ter efeitos diretos sobre espécies individuais, as mudanças climáticas podem alterar habitats de ecossistemas inteiros (incluindo urbanos), nos quais vetores ou hospedeiros não humanos podem prosperar ou falhar", diz Dubrow, autor de um artigo sobre o tema publicado na revista Nature.

A distribuição geográfica de vetores como o Aedes aegypti, mosquito que transmite a dengue, por exemplo, é limitada por temperaturas mais frias. "À medida que a Terra aquece, as preocupações são de que o mosquito e o vírus se espalhem para latitudes e altitudes mais elevadas, que a incidência aumente e que a estação de transmissão se prolongue em algumas áreas endêmicas", observa Dubrow. "Há também a possibilidade de uma diminuição na incidência de dengue ou de outras doenças transmitidas por vetores em áreas endêmicas se elas ficarem tão quentes que a sobrevivência ou a alimentação do vetor seja inibida. Essas áreas, no entanto, ainda enfrentariam outros impactos severos do calor extremo."

Cenário brasileiro

No Brasil, os modelos apontam para um futuro preocupante. Um estudo de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), da Universidade Federal da Paraíba, da Universidade Federal Fluminense e do Instituto de Saúde Global de Barcelona fez previsões, com algoritmos, sobre a prevalência e a distribuição de três doenças tropicais negligenciadas — leishmaniose visceral, febre amarela e malária — em cenários de aquecimento global. A pesquisa revelou que, enquanto nas regiões Norte e Centro-Oeste o clima favorecerá a febre amarela, no Sudeste e no Sul, a leishmaniose visceral encontrará condições propícias à disseminação. "Nos cenários para malária, foi observado aumento nas condições climáticas favoráveis à alta incidência na Mata Atlântica, onde, atualmente, ocorrem casos extra-amazônicos", diz o artigo, publicado na revista Sustentabilidade em Debate.

Doenças transmitidas por carrapato, como febre maculosa, Lyme e Powassam, também podem proliferar em todo o mundo, segundo um alerta da Universidade de Oxford, no Reino Unido. "Os carrapatos transmitem uma gama notável de micro e macroparasitas — muitos dos quais são patógenos de humanos e animais domésticos. Obviamente, impactos negativos serão aparentes, como mudanças na incidência e prevalência de doenças. A evidência de que a mudança climática está afetando enfermidades causadas por patógenos transmitidos por carrapatos é considerável", ressalta Pat Nuttel, professor de arboviroses da instituição e editor do livro acadêmico Climate, Ticks and Diseases, que explora a associação entre clima, carrapatos e doenças.

Trabalhador indiano aplica o fumacê no combate à zika: previsão de migração dos vetores
Trabalhador indiano aplica o fumacê no combate à zika: previsão de migração dos vetores (foto: Sam Panthaky/AFP)

 

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Duas perguntas para Clarice Lisboa, diretora da Sociedade de Infectologia do DF e médica da Secretaria de Saúde do DF

Para os laboratórios, parece não ser lucrativa a pesquisa de novos medicamentos e vacinas para doenças negligenciadas. Especialmente no caso do mundo em desenvolvimento, qual o papel do Estado e das instituições públicas nesses casos?


As doenças negligenciadas estão muito associadas a condições de pobreza. Como as pessoas pobres não têm condições de comprar medicamentos caros (muitas vezes, nem mesmo os baratos), as empresas farmacêuticas não demonstram interesse em investir, já que não seria lucrativo. O Estado precisa assumir esse papel e investir em pesquisa para elaboração de novos remédios e vacinas contra essas doenças. Do contrário, continuaremos lidando com um número elevado de pessoas adoecendo, necessitando de internação e até perdendo a vida como consequência da estagnação da produção científica sobre esse tema. Em 2020, por exemplo, cerca de 1,5 milhão de pessoas morreram de tuberculose (incluindo 214 mil entre pessoas que vivem com HIV).

Cientistas climáticos e pesquisadores da área médica têm alertado que as mudanças climáticas agravarão o cenário das doenças tropicais, muitas delas consideradas negligenciadas. A senhora acredita que o mundo está se preparando adequadamente para enfrentar essa realidade próxima?


Acredito que não. As mudanças climáticas são uma realidade, por mais que os negacionistas insistam no contrário. Após períodos de enchentes, observamos o aumento na incidência de enfermidades como leptospirose, doenças diarreicas, dengue, entre outras. Catástrofes climáticas provocam desemprego, piora da desigualdade social e, por conseguinte, mais pessoas se encontrarão na faixa de pobreza, onde prevalecem as doenças negligenciadas. Não estamos cuidando do planeta como deveríamos, nem tão pouco investindo suficientemente no desenvolvimento de vacinas e nos tratamentos contra as doenças negligenciadas.

Ciclos modificados

Werciley Júnior, infectologista e chefe da Comissão de Controle de Infecção do Hospital Santa Lúcia, em Brasília:

 

"Com a mudança climática, muitos insetos, artrópodes e outros animais mudarão seus hábitos e, com isso, a transmissão de doenças aumentará. Sabemos também que, dentro do contexto de desmatamento e invasão de áreas de matas, ocorre uma modificação do ciclo de transmissão, levando para o meio urbano doenças que não era comuns a ele. Um exemplo que estamos vendo é uma doença que foi negligenciada e que, agora, está voltando, o ebola. Essa doença já passou por modificação no ciclo de transmissão: antes, era só em aldeias rurais e, agora, já começa a atingir grandes cidades, com risco de disseminação pelo mundo."

 

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