Nem a famosa pontualidade britânica foi suficiente para que a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26) terminasse no dia certo. Depois de intensas negociações durante toda a sexta-feira, a presidência do evento, que acontece em Glasgow, no Reino Unido, afirmou que não seria possível aprovar o texto final na data de encerramento, previsto para as 18h (locais). Fica para hoje ou até mesmo para domingo a aprovação unânime do documento que visa fazer valer o Acordo de Paris, redigido por 194 países há seis anos, na capital francesa.
No início da sexta-feira, a presidência da COP divulgou o segundo rascunho do documento, enfatizando a necessidade de se abandonar o uso de carvão e substituir os combustíveis fósseis para alcançar os objetivos estabelecidos há seis anos na capital francesa. Um novo esboço está previsto para hoje de manhã. Para evitar um cenário catastrófico — nas palavras usadas em relatórios da ONU —, o Acordo de Paris determina que, até o fim do século, a temperatura global não seja maior que 2°C acima dos níveis pré-industriais. O texto também ressalta que o aumento, preferencialmente, deve ser de 1,5°C. Modelagens recentes, porém, mostraram que, com os prazos definidos na França, e no ritmo em que as mudanças estão sendo implementadas, o mundo estará entre 2,4°C e 2,7°C mais quente, exigindo que, da COP26, saiam metas mais ambiciosas.
O segundo rascunho, apresentado pelo presidente do evento, o britânico Alok Sharman, pede a "supressão progressiva da energia produzida com carvão sem (mecanismos de) mitigação e dos subsídios ineficazes aos combustíveis fósseis". Pela primeira vez na história das COPs, esses últimos, que incluem gás e petróleo, foram citados nominalmente em uma conferência climática. Mas o que parece ser um avanço é, na verdade, um recuo em relação ao primeiro texto, divulgado na quarta-feira. Embora pareça um detalhe, as conferências climáticas são trabalhadas em cima de palavras, para não gerar diferentes interpretações. O rascunho anterior falava em "acelerar o abandono do carvão e o financiamento dos combustíveis fósseis", uma fala considerada mais contundente por especialistas climáticos.
O texto apresentado insiste na possibilidade de a temperatura não subir mais que 1,5°C, meta defendida todos os dias por manifestantes que lotaram as ruas de Glasgow durante as duas semanas da conferência. O ponto 21 diz que os signatários de Paris reconhecem "que os impactos das alterações climáticas serão muito mais baixos com o aumento da temperatura de 1,5°C, em comparação com 2°C, e decide prosseguir os esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5°C". O ponto seguinte diz: "Também reconhece que limitar o aquecimento global a 1,5°C requer reduções rápidas, profundas e sustentadas nas emissões globais de gases de efeito estufa, incluindo a redução das emissões globais de dióxido de carbono em 45% até 2030, em relação ao nível de 2010, e para zero líquido em meados do século, bem como reduções profundas de gases de efeito estufa não dióxido de carbono".
"As metas de redução de emissões na próxima década nos levam a uma catástrofe climática", comenta Tracy Carty, presidente da ONG Oxfam Internacional. "Precisamos de um acordo inequívoco em Glasgow que comprometa os governos a voltar no ano que vem, e todos os anos depois disso, com metas aprimoradas que manterão a meta de 1,5°C viva."
O rascunho também "solicita" aos países para fortalecer suas contribuições nacionalmente determinadas (NDCs), as metas individuais com que se comprometem para atingir os objetivos de redução de emissões. O texto anterior falava em "exortar". Apesar da mudança de palavra, o rascunho prevê que os signatários apresentem novas metas de emissão anuais, e não mais a cada cinco anos, ideia defendida principalmente pelo grupo de países mais vulneráveis às mudanças climáticas, como ilhas no Pacífico e nas Américas.
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Financiamento
Um dos pontos mais polêmicos e cruciais, o do financiamento de ações de adaptação e mitigação voltado às nações em desenvolvimento fala em "instar as Partes dos países desenvolvidos a fornecerem apoio aprimorado, inclusive por meio de recursos financeiros, transferência de tecnologia e capacitação, para ajudar as Partes dos países em desenvolvimento no que diz respeito à mitigação e adaptação". Esses últimos reclamam que nem o valor definido em Paris chegou a ser totalmente depositado, faltando 20% referentes a 2020, e defendem recursos mais robustos. "Temos que ver dinheiro na mesa para ajudar o mundo em desenvolvimento a realizar as mudanças necessárias, e isso tem que acontecer nas próximas horas", comentou o anfitrião da conferência, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, citado pela agência France-Presse de notícias (AFP).
"O mais gritante é a falta de qualquer menção ao plano financeiro para perdas e danos que foi proposto ontem (quinta) à noite pelo grupo de países em desenvolvimento G77", comenta Tracy Carty. "Reconhecer perdas e danos não trará de volta as casas submersas, campos envenenados e entes queridos perdidos. Os países ricos devem parar de bloquear o progresso e se comprometer a fazer algo a respeito."
Para Michael Grubb, professor e vice-presidente do Instituto de Recursos Sustentáveis da Universidade College London, os negociadores foram conservadores, contrastando com o texto do Acordo de Paris. "A resistência a declarações inequívocas sobre a eliminação progressiva do carvão ou o fim dos subsídios aos combustíveis fósseis sublinha algumas realidades políticas nacionais, e as NDCs oferecidas são claramente inconsistentes com os objetivos globais", diz. Ele teme que a pressão para se voltar no próximo ano com contribuições mais ambiciosas cause o efeito contrário: "O risco é aumentar o hiato entre a ambição nacional declarada e a política implementada — especialmente se o financiamento internacional for insuficiente". Ou seja: muito se falar e pouco se fazer.