No geral, as bactérias têm má reputação, já que se costuma pensar em cepas que causam doenças graves, como pneumonia e meningite. No entanto, existem muitas espécies benéficas, que auxiliam o corpo de maneiras distintas. Pesquisadores da Universidade de Cincinnati, nos Estados Unidos, desenvolveram um probiótico projetado para atingir e quebrar as defesas das células cancerosas, facilitando o trabalho das terapias que visam matar os tumores. As descobertas foram publicadas, recentemente, na revista Advanced Healthcare Materials.
Nalinikanth Kotagiri, o autor sênior do estudo e professor-assistente no James L. Winkle College of Pharmacy, investiga tumores sólidos ou aqueles definidos como crescimentos celulares anormais em órgãos, como a mama ou a próstata, em oposição à leucemia, que afeta o sangue. Kotagiri explica que muitos cânceres do tipo têm uma matriz extracelular composta de colágeno e ácido hialurônico, que forma uma barreira ao redor das células e torna mais difícil para anticorpos e integrantes do sistema imunológico alcançarem o tumor. A equipe estadunidense desenvolve bactérias probióticas para enfraquecer justamente esse escudo protetivo.
Shindu Thomas, o primeiro autor do estudo e aluno de pós-graduação no laboratório Kotagiri, trabalhou com a E. coli Nissle, uma bactéria que tem sido usada como probiótico por cerca de 100 anos e é diferente das cepas de E. coli que causam doenças. O micro-organismo foi manipulado para secretar uma abundância de estruturas menores, chamadas vesículas da membrana externa, na borda exterior das células. Essas estruturas carregam os mesmos materiais presentes na própria bactéria. Os pesquisadores, então, projetaram a E. coli Nissle para transportar uma enzima que quebra a matriz extracelular do câncer.
Por meio da nova tecnologia, qualquer proteína ou enzima pode ser fabricada a partir do micro-organismo pesquisado por Thomas. Kotagiri lembra que as bactérias tendem a se desenvolver em ambientes com baixo teor de oxigênio e imunodeficientes — duas características encontradas em cânceres sólidos. Por causa disso, aquelas especialmente projetadas são naturalmente atraídas para esses tumores. "Aproveitamos essa característica única da E.coli Nissle para nos localizarmos nesses tumores. Então, uma vez que as bactérias se alojam lá, elas começam a fazer vesículas em nanoescala, que carregam a enzima muito mais fundo na matriz do câncer", detalha.
Testes com animais
Depois de criar o probiótico, os pesquisadores estudaram o efeito da bactéria em modelos animais de câncer de mama e cólon. A bactéria foi administrada, por via intravenosa, cerca de quatro ou cinco dias antes do tratamento usual, permitindo que o micro-organismo tivesse tempo para se povoar e quebrar as defesas do tumor, preparando-o para a terapia.
Após a administração da bactéria e, em seguida, de doses de imunoterapia ou outro fármaco, drogas usadas na terapia direcionada, constatou-se que os camundongos sobreviveram duas vezes mais do que aqueles que receberam apenas o medicamento oncológico sozinho. O exame de imagem mostrou que a bactéria e a enzima eram eficazes em quebrar a matriz extracelular e em permitir que o tratamento chegasse às células doentes.
A equipe descobriu, ainda, que a bactéria afetava os tumores, mas não estava atacando células saudáveis em outros órgãos, como coração, pulmões, fígado e cérebro. Segundo Kotagiri, isso mostra que o micro-organismo pode ser seguro e não causará infecção em outras partes do corpo. Porém, mais pesquisas precisam ser feitas para examinar a segurança em grandes modelos animais e em humanos, particularmente em ambientes imunodeficientes. "Sempre é preciso ter cautela sobre como você poderá utilizar essa estratégia sem causar nenhuma sepse ou qualquer infecção evidente no corpo", pondera.
Saiba Mais
- Ciência e Saúde Covid: por que Brasil é único país que dará 3ª dose de vacina da Janssen
- Ciência e Saúde Brasil já aplicou mais de 360 milhões de vacinas contra a covid-19
- Ciência e Saúde Fiocruz alerta para aumento de bactérias resistentes a antibióticos
- Ciência e Saúde Fiocruz entrega lote com 3 milhões de doses da vacina AstraZeneca
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.
Combinação para terapias distintas
Há momentos da vida em que existe cerca de uma a duas vezes mais células de bactérias do que humanas no corpo de um indivíduo. Essa condição foi a que inspirou os cientistas da Universidade de Cincinnati a olharem mais de perto para os potenciais probióticos desse micro-organismo. "Existem bactérias no intestino, na pele, dentro dos pulmões, da boca e até dentro dos tumores. Então, por que não aproveitar isso e encontrar maneiras interessantes de torná-los um pouco mais proativos?", indaga o professor Nalinikanth Kotagiri.
O trabalho começou por volta de 2018. Se a bactéria modificada desenvolvida pela equipe continuar a se provar segura e eficaz, Kotagiri disse que há uma grande variedade de maneiras de manipulá-la para diferentes usos, incluindo o tratamento de doenças no intestino, na boca e na pele. Também há potencial de combiná-las com proteínas e moléculas para fazer uma plataforma de monoterapia (que usa um tipo de tratamento), em vez de apenas facilitar a combinada", cogita.
"Portanto, a bactéria pode servir essencialmente como uma nave-mãe, transportando a carga terapêutica necessária para nichos únicos no corpo. A partir daí, é uma entidade autossustentável", completa Kotagiri. "Embora as possibilidades sejam infinitas, também existem desafios significativos. Temos que ser bons administradores para tornar esse tipo de evidência possível e para que a comunidade entenda quais são os limites e o que pode ser feito."