Publicações compartilhadas mais de 3 mil vezes nas redes sociais em vários idiomas desde, pelo menos, fevereiro de 2020 afirmam que as mulheres negras têm um DNA mitocondrial com “todas as variações [genéticas] possíveis para cada tipo de ser humano”, devido à existência do chamado “Eve Gene”.
Mas a afirmação é enganosa: embora a espécie humana tenha se originado na África e os habitantes desse continente apresentem uma maior diversidade genética, segundo cientistas consultados pela AFP, esse boato distorce o conceito de “Eva mitocondrial”.
“Cientificamente, a mulher negra é o único órgão que possui o DNA da mitocôndria que tem todas as variações possíveis para todos os tipos de seres humanos nesta terra (os africanos, os albinos, os europeus, os do Oriente Médio, etc.) Quando o DNA de uma mulher negra sofre mutação, todos os outros tipos de seres humanos ocorrem. Isso é chamado de ‘Eve Gene’ e só é encontrado em mulheres negras” , dizem publicações compartilhadas no Facebook, no Instagram e no Twitter.
A afirmação é acompanhada de uma imagem da obra da pintora norte-americana com origem afrocubana Harmonia Rosales intitulada “La cosecha” , de 2018, que apresenta a Virgem Maria negra rodeada de crianças de diferentes cores de pele.
DNA mitocondrial
As mitocôndrias são “elementos do citoplasma da célula animal ou vegetal cuja função essencial é assegurar a oxidação, a respiração celular, o armazenamento de energia por parte da célula e o armazenamento de certas substâncias” , segundo a definição do Larousse Médical .
Laurent Duret , diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França e membro do laboratório de biometria e biologia evolutiva da Universidade de Lyon 1, explicou à equipe de verificação da AFP que, assim como o núcleo de nossas células, as mitocôndrias contêm ácido desoxirribonucleico (DNA), o portador da informação genética. O estudo das mitocôndrias, transmitidas exclusivamente pelas mães, de geração em geração, permite “traçar a genealogia dos indivíduos por meio da comparação de seu DNA” , detalhou.
Mas as publicações viralizadas dão uma interpretação errada, “uma mistura de coisas verdadeiras e falsas” , segundo Evelyn Heyer, professora de antropologia genética no Museu Nacional de História Natural (MNHN) de Paris e autora do livro “ L'Odyssée des Gènes ” ( “A odisseia dos genes” , em tradução livre do francês).
O “Eve gene” ou “gene Eva” mencionado nas publicações não existe, mas parece se referir à noção de “ Eva mitocondrial ”.
“O DNA mitocondrial de todos os humanos do planeta descende de uma única mitocôndria: é o que é chamado de Eva mitocondrial” , explicou Heyer.
A existência dessa mulher negra, que provavelmente viveu na África há cerca de 200 mil anos, foi estabelecida em 1987 por Rebecca Louise Cann, Mark Stoneking e Allan Charles Wilson em um artigo publicado na revista científica norte-americana Nature.
Os autores chegaram a essa conclusão após analisar amostras de DNA mitocondrial de 147 pessoas de cinco regiões diferentes do mundo: África, Ásia, Austrália, Europa e Nova Guiné, no Oceano Pacífico.
“Hoje em dia, ninguém carrega as mitocôndrias desse ancestral, que sim existia” , disse Duret, do CNRS. “O que carregamos são descendentes dessas mitocôndrias, que, entretanto, acumularam mutações” , acrescentou.
Confusão
O termo “Eva mitocondrial” não aparece no artigo de Cann, Stoneking e Wilson. Essa denominação, “enganosa” segundo Laurent Duret, nasceu após a publicação de sua obra.
“Foi um erro chamá-lo assim” , disse Heyer. “Se você olhar para as mitocôndrias de todo o mundo (...), nosso DNA mitocondrial pode se remontar a um ancestral comum, mas isso não significa que não havia outras pessoas [contemporâneas desse ancestral] naquela época” , acrescentou.
Essa mulher é “certamente a única que desde então transmitiu suas mitocôndrias a todos os demais” , mas o nome de Eva sugere a ideia de um berço da humanidade, “sendo que não é assim” , resume a cientista.
Os dois cientistas consultados pela AFP destacaram também que cada fragmento dos nossos cromossomos tem sua própria história e genealogia. “Cada um de nós não tem apenas um ancestral, mas milhares de ancestrais” , explicou Duret. “Se olhássemos outros cromossomos, encontraríamos outros ancestrais comuns” , por exemplo um “Adão Y” , se estivéssemos interessados no cromossomo sexual Y, disse.
Raízes africanas
Porém, para Duret, “a intenção da mensagem [transmitida na publicação viral] é correta, no sentido de que o que está claramente estabelecido [cientificamente] é que a nossa espécie se originou na África” .
“Quando se observa o DNA mitocondrial de todos os seres humanos do planeta, procedentes de muitos lugares diferentes, percebe-se que a África tem a maior diversidade [desse DNA]”, explicou Heyer. Os tipos de DNA mitocondrial observados fora do continente representam “um subconjunto daqueles encontrados na África” .
“A mitocôndria que carregava essa ‘Eva mitocondrial’, cada vez que era transmitida de geração em geração, adquiria mutações e diversidade genética” , disse Duret.
“No primeiro período, nossa espécie estava essencialmente confinada na África, onde se acumulou a diversidade genética no genoma mitocondrial” , acrescentou.
Em seguida, os humanos migraram para outras partes do mundo, “de forma progressiva; entre 60 mil e 40 mil anos atrás e, mais recentemente, há 15 mil anos, para a América” , explicou Duret.
Portanto, as publicações viralizadas são enganosas: ainda que o DNA das mulheres negras de hoje não tenha “todas as variações [genéticas] possíveis para cada tipo de ser humano” na Terra e que o “Eve gene” não exista, o DNA mitocondrial de cada ser humano descende de uma mulher africana que viveu há cerca de 200 mil anos. Além disso, como a espécie se originou na África antes de migrar para outras regiões, as populações desse continente têm a maior diversidade genética.
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