Enquanto líderes mundiais discursam sobre a necessidade de se atingir a principal meta do Acordo de Paris — limitar o aumento da temperatura a 1,5°C até o fim do século —, nos bastidores, muitos países tentaram influenciar o relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), da Organização das Nações Unidas (ONU). Documentos revelados pela rede britânica BBC mostram que diversas nações pressionaram para retirar do texto final — um importante subsídio para as discussões da Conferência do Clima, a COP — temas que lhes são caros economicamente.
Brasil e Argentina, por exemplo, não queriam ver no relatório do IPCC, elaborado por mais de 100 especialistas independentes de todo o mundo, as evidências científicas de que a pecuária contribui significativamente para a emissão de gases de efeito estufa, que levam ao aumento de temperatura. Também houve lobby brasileiro para interferir no trecho em que o aumento das taxas de desmatamento é associado a mudanças nas regulamentações governamentais, diz a matéria da BBC, baseada em mais de 32 mil intervenções feitas por órgãos governamentais, empresas e outras partes interessadas aos cientistas que elaboram o relatório. O governo brasileiro não comentou a reportagem.
De acordo com a rede britânica, Arábia Saudita, Japão e Austrália tentaram influenciar a recomendação da ONU de que os combustíveis fósseis sejam substituídos por outras fontes energéticas o mais rápido possível. “Frases como ‘necessidade de ações de mitigação urgentes e aceleradas em ampla escala’ devem ser retiradas do relatório”, aconselhou o ministério saudita do Petróleo ao IPCC. O vazamento dessas informações ocorre a uma semana do início da COP 26 em Glasgow, no Reino Unido.
O IPCC informou à reportagem da BBC que os comentários governamentais são “centrais no processo de revisão científica”, mas que os autores não têm obrigação de incorporá-los ao relatório. Representantes do painel reforçaram que lobbies visando favorecer setores econômicos sem qualquer evidência científica são desconsiderados.
Sem impacto
Martin Siegert, codiretor do Instituto Grantham de Mudanças Climáticas e Meio Ambiente do Reino Unido, o anfitrião da COP 26, disse que, embora o relatório exponha “o comportamento de certas nações que tentaram conter o progresso na descarbonização por meio do processo do IPCC”, o lobby não tem impacto sobre a credibilidade científica do relatório. “É um triunfo que o IPCC defenda a ciência em face de tão vigorosos interesses investidos, e devemos ser gratos aos cientistas envolvidos por não cederem a tal pressão”, ressaltou.
Em nota, a diretora-executiva do Greenpeace International, Jennifer Morgan, afirmou que a reportagem da BBC demonstra “como um pequeno grupo de países produtores de carvão, petróleo e carne continua a colocar os lucros de algumas indústrias poluentes antes da ciência e do futuro do nosso planeta”. “O teste-chave para os líderes mundiais é se eles concordam ou não em eliminar rapidamente os combustíveis fósseis, como a ciência garante. A história não será gentil com eles se falharem — e nós estaremos observando.”