CIÊNCIA

Médicos ganham Prêmio Nobel por desvendar como cérebro responde ao calor, frio e ao toque

Os americanos David Julius e Ardem Patapoutian dividem o prêmio de Medicina por desvendarem mecanismos que explicam como o cérebro responde ao calor, ao frio e ao toque. Descobertas podem, por exemplo, ajudar a melhorar o tratamento da dor crônica

Durante toda a história, médicos, estudiosos e até filósofos se perguntaram de que forma o cérebro humano consegue identificar sensações externas ao corpo, como o toque, o calor e o frio. Dois neurocientistas dos Estados Unidos conseguiram responder a essa questão e, em razão das valiosas descobertas, receberam o Prêmio Nobel de Medicina deste ano. David Julius identificou um sensor nas terminações nervosas da pele que respondem a mudanças de temperatura. Ardem Patapoutian, por sua vez, descobriu uma nova classe de sensores que respondem a estímulos mecânicos na pele e nos órgãos internos. Os mecanismos do sistema nervoso desvendados pela dupla, em trabalhos independentes, podem contribuir, por exemplo, para o desenvolvimento de tratamentos mais eficazes contra a dor crônica e para um maior entendimento sobre o funcionamento cerebral.

“Suas descobertas revolucionárias nos permitiram compreender como o calor, o frio e a força mecânica podem desencadear impulsos nervosos que nos permitem perceber e nos adaptar ao ambiente”, informou o júri do Nobel durante o anúncio dos vencedores, feito, ontem, em Estocolmo, na Suécia. Os responsáveis pela escolha também destacaram que as pesquisas detalham mecanismos essenciais para a sobrevivência e a interação dos indivíduos com o mundo que os cerca. “Em nossa vida diária, consideramos essas sensações algo óbvio, mas como os impulsos nervosos são iniciados para que a temperatura e a pressão possam ser percebidas? Essa pergunta foi solucionada pelos vencedores do Nobel deste ano”, ressaltou o júri.

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David Julius, 65 anos, professor da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, se dedica a investigar esse fenômeno há ao menos 20 anos. No fim da década de 1990, ele utilizou um composto ativo da pimenta malagueta que provoca sensação de queimação, a capsaicina, para identificar um sensor presente nas terminações nervosas da pele que responde ao calor. Para essa tarefa, montou uma pequena biblioteca de genes relacionados a sensações como dor, calor e toque. Por meio dos testes, identificou a proteína TRPV1, que responde à capsaicina. A descoberta fez com que outros receptores de temperatura fossem encontrados, como o gene TRPM8, que responde ao frio, em uma análise feita em parceria com o segundo laureado, Ardem Patapoutian.

De origem libanesa e armênia, Patapoutian, 54 anos, é professor do Instituto de Pesquisa Scripps, também na Califórnia. O pesquisador utilizou células sensíveis à pressão para encontrar sensores que respondem a estímulos mecânicos à pele. Após a realização de testes em mais de 70 genes, identificou, primeiro, o canal iônico Piezo1. Em seguida, o Piezo2. Ambos são essenciais ao tato. “Na ciência, muitas vezes consideramos certas coisas muito interessantes como garantidas. Sabíamos que (esses sensores) existiam, sabíamos que faziam algo muito diferente que a maior parte das outras células que se comunicam entre si quimicamente. Mas a resposta era difícil de dar”, apontou Patapoutian.

Lacunas preenchidas

Neurocientista e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D´Or de Pesquisa e Ensino, Marília Zaluar Guimarães diz que o prêmio era esperado por quem atua na área. Isso porque as descobertas preencheram lacunas que intrigavam profissionais há muito tempo. “Esse reconhecimento era algo que todos desse nicho neurocientífico comentavam desde que o Julius publicou seu primeiro artigo, em 1997. Ele conseguiu identificar mecanismos de algo que sabíamos que ocorria, mas que não tínhamos como explicar. Com um grande background de biotecnologia e um trabalho dedicado, foi capaz de mostrar como o cérebro consegue captar as mudanças de temperatura, sanando dúvidas muito antigas e essenciais para a compreensão desse órgão”, justifica.

A brasileira, que já trabalhou com David Julius, conta que o laureado também é conhecido pela atuação “impecável”. “Ele é extremamente dedicado à pesquisa. Foi durante um curso em Buenos Aires, em 1998, que conheci seu trabalho e decidi que seria uma ótima oportunidade trabalhar em seus projetos. Em seguida, me candidatei a uma bolsa de estudo e fui aos Estados Unidos, onde trabalhei com ele por mais de dois anos, indo embora em 2004. Foi uma experiência incrível. Ele é criterioso, investiga com cuidado o que é apresentado a ele, é um artista. Esse reconhecimento é mais que merecido”, afirma.

O pesquisador, porém, diz não ter acreditado na escolha inicialmente. “Você nunca espera que essas coisas aconteçam (...) Pensei que fosse uma piada”, contou à rádio pública sueca. Desde 2014, Julius aparecia na longa lista de cientistas aspirantes ao Nobel elaborada anualmente pela consultoria americana Clarivate. Em 2019, ele ganhou o Breakthrough Prize e recebeu US$ 3 milhões doados por fundadores de empresas de tecnologia (Google e Facebook).

Desta vez, Julius dividirá com Patapoutian o prêmio de 10 milhões de coroas suecas (cerca de R$ 6,1 milhões) pela atuação “incrível”, segundo Thomas Perlmann, diretor do Comitê Nobel de Medicina. “Ambos são pesquisadores incríveis. Eles abriram as portas das sensações sensoriais de uma forma totalmente única”, elogiou.

Assim como em 2020, em função da pandemia, não haverá uma cerimônia para a entrega do prêmio. Os laureados do Nobel de Medicina, também chamado de Nobel de Fisiologia, o receberão em casa. Hoje, será anunciada a escolha para o Nobel de Física. Na quarta, a de Química. Literatura será anunciado na quinta-feira, e o Nobel da Paz, no dia seguinte. O prêmio de Economia encerrará a temporada na próxima segunda-feira.

Saiba Mais

Handout/AFP - 2/3/17 - David Julius e Ardem Patapoutian: estudos independentes respondem a questionamentos que intrigavam até antigos filósofos
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Escolha surpreende e fortalece tradição

A escolha dos ganhadores do prêmio Nobel de Medicina deste ano surpreendeu muitos especialistas. Era grande a expectativa de que a vitória seria para pesquisas sobre as vacinas de RNA mensageiro, tecnologia usada para o desenvolvimento dos imunizantes contra o novo coronavírus em tempo recorde. Daniel Martins de Souza, professor de bioquímica do Instituto de Biologia da Universidade de Campinas (Unicamp), avalia que a escolha dos neurocientistas fortalece a tradição do Nobel de seguir uma espécie de “fila” na concessão dos prêmios.

“Muitos especialistas estavam falando dessa tecnologia do RNA e, talvez, dos trabalhos com o sistema canabinoide, que está relacionado aos efeitos dos compostos presentes na maconha em relação ao cérebro. Essas são descobertas mais recentes, que poderiam passar à frente, mas, com essa escolha, vimos que o júri resolveu manter a tradição de reconhecer trabalhos mais antigos primeiro”, justifica.

Na avaliação de Souza, as pesquisas desenvolvidas pelos laureados deste ano foram reconhecidas por responderem a perguntas seculares, feitas até por antigos filósofos. “É algo muito bacana, pois nos faz entender como o corpo percebe o mundo e de que forma isso ocorre com base na química. São questões que todas as pessoas já pararam para pensar. Por exemplo, por que sentimos dor?”, ilustra. “René Descartes estudou esse tema no século 17. Ele acreditava que existia alguma ligação entre a mente e a pele. Também já tivemos uma pesquisa ganhadora do Nobel que tinha a dor como objeto de estudo.”

O professor da Unicamp destaca, ainda, que o trabalho da dupla americana é extremamente valioso para a área médica, sendo que os desdobramentos dessas descobertas já estão em desenvolvimento. “Quando temos essas respostas, surge uma série de possibilidades. Esses mecanismos foram vistos já há alguns anos e, por isso, temos pesquisadores que estão se apoiando nessas descobertas na busca por medicamentos para dor, por exemplo, e também para continuar decifrando o funcionamento do cérebro, algo que é feito aos poucos mesmo”, afirma.

Recepções distintas

Em 1944, os pesquisadores norte-americanos Joseph Erlanger e Herbert Gasser receberam o Nobel de Medicina por constatarem que os estímulos externos eram recebidos pelo cérebro por meio de diferentes fibras nervosas sensoriais (células neurais). A dupla acreditava que algumas dessas estruturas eram responsáveis pela sensação de dor, e outras, pela identificação do tato. Ao longo da carreira, eles acumularam outros feitos científicos de relevância, como a descoberta da influência da pressão sanguínea sobre a secreção renal.