Conhecidos poeticamente como “a janela da alma”, os olhos também podem revelar uma série de segredos do corpo humano. Em estudos científicos recentes, pesquisadores têm observado que uma análise ocular apurada pode ajudar a identificar, de forma precoce, problemas de saúde de difícil diagnóstico, como autismo e Alzheimer. A análise minuciosa também é capaz de revelar um risco maior de morte e de reinternação por problemas cardíacos. Com base nessas descobertas, ganha força a proposta de que a avaliação oftalmológica faça parte dos tradicionais checapes, os exames de monitoramento de rotina.
O Alzheimer é uma das doenças menos compreendidas pelos cientistas, o que faz com que o tratamento e o diagnóstico sejam complicados. Para ajudar nesses processos, cientistas americanos decidiram expandir as investigações para além da área cerebral, algo recorrente em estudos sobre o tema, e avaliar outro órgão. “Resolvemos ir atrás de mais marcadores biológicos porque acreditamos que eles poderiam contribuir para uma melhor compreensão dessa doença e sua identificação. Por isso, decidimos entrar em um campo pouco explorado. Apostamos em uma avaliação ocular mais detalhada”, relata, em comunicado, Robert Rissman, pesquisador da Universidade da Califórnia, nos EUA, e principal autor do estudo, publicado na revista Alzheimer’s & Dementia.
A equipe avaliou um grupo de sete pacientes que havia participado de estudos anteriores sobre neurodegeneração. Por meio de varreduras oculares, foi detectada a presença de manchas retinais indicando a ocorrência de depósitos de amiloides, um tipo de proteína presente em diferentes partes do organismo humano, mas que, acumulada no cérebro, está relacionada ao Alzheimer. Ao comparar a análise oftalmológica com exames cerebrais feitos pelos voluntários em outros experimentos, os cientistas observaram que as manchas retinais estavam associadas aos níveis mais elevados de amiloide no cérebro.
Para os investigadores, os dados indicam uma nova maneira de monitorar o surgimento do Alzheimer e, possivelmente, outros tipos de demência. “Esse foi um estudo inicial, com dados de poucos pacientes”, frisa Rissman. “Mas essas descobertas são encorajadoras, porque sugerem que pode ser possível determinar o início do Alzheimer antes de sua total propagação e fornecer, assim, um diagnóstico por meio de imagens da retina, em vez de varreduras cerebrais que são mais difíceis de serem feitas e também mais caras.”
Os planos são de, em uma nova fase, avaliar um número maior de pacientes e testar o uso de medicamentos como uma possível terapia para o acúmulo da mieloide da retina. “Nosso próximo passo é entender mais detalhes relacionados à relação entre a amiloide retinal e a cerebral. Para isso, queremos realizar uma análise mais longa e avaliar o impacto do solanezumab (anticorpo monoclonal), a fim de saber se ele é capaz de reduzir as manchas de amiloide da retina dos pacientes”, adianta Rissman.
Exame de rotina
Adelmo Jesus, oftalmologista do Visão Hospital de Olhos, em Brasília, avalia que o estudo mostra dados totalmente novos e que, caso se confirmem, podem ser extremamente úteis para a área médica. “Esse trabalho nos mostra que a associação entre a amiloide da retina e a cerebral é algo que precisa ser considerado pelos médicos. Essas manchas podem ser vistas em exames de rotina da oftalmologia, como a análise de fundo de olho. Se esse problema realmente estiver relacionado com o Alzheimer e o especialista constate essa alteração, seria importante avaliar outros dados dos pacientes, como idade e se existem casos da doença na família”, detalha.
O médico enfatiza que o diagnóstico precoce de uma doença neurodegenerativa é difícil, mas chegar a ele é um ganho importante do ponto de vista da antecipação do tratamento. “Faz muita diferença você diagnosticar mais cedo uma enfermidade que pode gerar grandes prejuízos à qualidade de vida. Muitas vezes, a pessoa não mostra sintomas, mas o risco de ter a enfermidade está lá”, justifica. “Caso essa relação vista no estudo se comprove, a identificação precoce poderá ser feita por meio de exames simples e não invasivos, além do compartilhamento dessas informações com neurologistas, em um trabalho conjunto com a oftalmologia.”
Universidade da Califórnia/Divulgação -
"Pode ser possível determinar o início do Alzheimer antes de sua total propagação e fornecer, assim, um diagnóstico por meio de imagens da retina"
Robert Rissman, pesquisador
da Universidade da Califórnia
Universidade da Califórnia/Divulgação - Análise ocular para monitoramento de enfermidades diversas. Robert Rissman, pesquisador da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos.
A pupila e os riscos ao coração
A avaliação ocular minuciosa também pode contribuir para a proteção de pessoas com problemas cardíacos graves, segundo cientistas japoneses. Eles avaliaram 870 pacientes internados por insuficiência cardíaca aguda que passaram por um monitoramento ocular constante durante o período em que estiveram hospitalizados — as internações se deram entre 2012 e 2017. Os pacientes com área de pupila pequena enquanto estavam na unidade de saúde apresentaram taxa de sobrevida significativamente pior e índices de readmissão significativamente maiores por insuficiência cardíaca. “Nossos resultados sugerem que a área da pupila é uma nova maneira de identificar pacientes cardíacos com risco elevado de morte ou readmissão hospitalar”, destaca Kohei Nozaki, médico e pesquisador do Hospital Kitasato e principal autor do estudo, publicado na revista ESC Heart Failure.
Os cientistas defendem que medir a pupila dos pacientes pode se tornar um exame padrão, com potencial para aprimorar o tratamento de quem apresenta maiores riscos de complicações. “A área da pupila pode ser avaliada de forma rápida, fácil e não invasiva. Essa análise oferece uma oportunidade de intervir e melhorar as perspectivas desse grupo. Pacientes com uma pequena área de pupila podem ser encaminhados para práticas de atividade física, por exemplo, que contribuem para uma melhora da insuficiência cardíaca”, ilustra.
Rafael Yamamoto, oftalmologista e membro da Sociedade Brasileira de Retina e Vítreo (SBRV), afirma que o estudo japonês é interessante, mas tem limitações. “Essa foi uma amostra muito pequena de pacientes, e esse tipo de análise não tem como ser utilizada em indivíduos com retinopatias ou doenças oftalmológicas que causam alterações do reflexo pupilar”, explica. Ainda assim, Yamamoto acredita que o trabalho traz dados importantes — indica, por exemplo, como a pupila é capaz de revelar dados tão importantes relacionados à saúde cardíaca.
Outra vantagem do trabalho da equipe japonesa, segundo Yamamoto, é o uso de um método simples de análise, que pode ser expandido para a avaliação de outras enfermidades. “Eles sugerem uma avaliação não invasiva e fácil de ser incorporada. Outras doenças que são decorrentes ou estão associadas à desordem do sistema nervoso autônomo, como artrite reumatoide, Parkinson, apneia obstrutiva do sono e diabetes, poderiam ter a mesma abordagem da avaliação pupilar”, acredita.
E a lista de complicações é grande. Segundo o médico, uma neuropatia óptica, a perda súbita da visão, pode preceder, por exemplo, um diagnóstico de doenças relacionadas ao sistema nervoso central vários anos antes da doença se manifestar. “As uveítes (inflamação intraocular) podem levar a diagnóstico de doenças autoimunes antes que se apresentem sintomas. Enfim, o exame oftalmológico sempre pode acrescentar muito ao diagnóstico de outras doenças sistêmicas que podem ser diagnosticadas precocemente, evitando maiores problemas ao paciente.” (VS)
Indicadores de autismo
Existem poucos marcadores que indiquem a ocorrência de autismo. Um deles pode estar na visão, acredita Meghan Miller, professora-associada do Departamento de Psiquiatria e Ciências do Instituto Mind, nos EUA.“O comportamento incomum de inspeção visual está, há muito, associado ao autismo, mas esse tipo de análise é difícil de ser feita, tanto que nenhum teste havia sido testado anteriormente em crianças tão novas, com 9 meses de idade apenas”, relata.
A especialista e sua equipe avaliaram 89 bebês cujos irmãos mais velhos tinham transtorno do espectro do autismo (alto risco) e 58 bebês com irmãos saudáveis (baixo risco). As crianças realizaram uma série de tarefas simples, como brincadeiras, e foram observadas aos 9, 12, 15, 18, 24 e 36 meses de idade.
Após medir a frequência do contato visual do bebê com os brinquedos e detalhes como olhar de lado, tempo de foco (olhares mais longos para objetos do que para indivíduos) e traços de receptividades (como sorrir), os pesquisadores classificaram o risco de a criança desenvolver autismo e perceberam que as diferenças na inspeção visual incomum foram mais proeminentes, consistentes e presentes mais cedo nas desenvolveram TEA. “Esse estudo sugere que a inspeção visual incomum de objetos pode prever o TEA”, afirma Miller, principal autora do estudo, publicado no Journal of Abnormal Psychology.
Segundo Rafael Vinhal, psiquiatra infantil do Instituto Castro e Santos (ICS), em Brasília, a inspeção visual é apontada como algo que pode ser um fator de risco para autismo. “Esse estudo mostra que, por meio de uma avaliação mais detalhada da visão, temos como identificar nuances do comportamento social dessas crianças, e isso fortalece um diagnóstico desse transtorno”, diz.
Vinhal avalia que os cientistas conseguiram resultados que podem ser bastante úteis à área médica. “Quando temos um diagnóstico precoce, o acompanhamento dos médicos pode ser feito de forma mais completa. É possível propor intervenções que têm chances de apresentar resultados mais positivos, pois não perderemos a janela de estimulação do aprendizado”, explica. (VS)