Nos últimos meses, Ricardo Palacios teve uma árdua missão: testar uma vacina para uma doença nova, que matava (e continua a matar) milhares de pessoas no mundo inteiro todos os dias.
Como diretor de pesquisa clínica do Instituto Butantan, em São Paulo, o médico e cientista social colombiano foi responsável por conduzir uma equipe de cientistas que fez os testes clínicos da CoronaVac, um dos imunizantes aprovados contra a covid-19 em tempo recorde.
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O especialista também trabalhou com a ButanVac, que ainda está em desenvolvimento, e se envolveu em projetos de outras candidatas a vacinas, como uma que protege contra a dengue.
Formado em medicina pela Universidade Nacional da Colômbia e em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP), Palacios também é doutor em infectologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ele acredita que a pandemia mostrou o quanto os cientistas estavam despreparados para se comunicar com o público.
"Houve uma falha de comunicação, que ainda não conseguiu ser superada. Precisamos ajustar a expectativa do público sobre o que esperar das vacinas contra a covid-19", diz.
O pesquisador explica que os imunizantes utilizados atualmente foram desenvolvidos para diminuir o risco das formas graves da doença, que exigem hospitalização e intubação e podem matar.
Porém, de acordo com a análise que ele faz, isso não ficou tão claro e as pessoas entendem que estão completamente protegidas após tomarem as duas doses.
O médico também entende que, com o avanço das campanhas de vacinação, será necessário ensinar a população sobre o manejo de risco de se infectar com o coronavírus e como proteger a camada da sociedade que está mais propensa a complicações.
"Você quer passar o Natal com familiares e amigos. Como planejar esse evento para que ele não acabe disseminando a covid-19 para pessoas vulneráveis, que vão acabar internadas? A gente tem que começar a ensinar isso e acho que essa é uma outra falha que precisa ser corrigida", aponta.
Entre o final de julho e o início de agosto, Palacios deixou a diretoria de pesquisas clínicas do Butantan, após o instituto anunciar uma reestruturação. Durante a entrevista exclusiva para a BBC News Brasil, porém, ele não quis comentar sobre o caso.
Confira os principais trechos a seguir.
BBC News Brasil - Como o senhor entrou para o universo da pesquisa e do desenvolvimento de vacinas?
Ricardo Palacios - Comecei a trabalhar com pesquisa clínica logo depois da minha formação em medicina, em 1996. Desde aquela época, foquei principalmente em doenças infecciosas, no desenvolvimento de tratamentos e vacinas.
Sobre as vacinas, particularmente, tive a oportunidade de trabalhar como consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS) em alguns projetos e conhecer a realidade em diversos continentes.
Ainda pude fazer meu doutorado no Brasil, na Universidade Federal de São Paulo, e trabalhei em projetos de pesquisa sob a coordenação do professor Esper Kallas. Na sequência, fui convidado para colaborar em muitos projetos e trabalhei com o desenvolvimento de vacinas no Instituto Butantan, onde virei diretor da área de ensaios clínicos.
BBC News Brasil - Um detalhe que chama atenção em seu currículo é o fato de, além da graduação em medicina, o senhor ter uma formação em ciências sociais. É possível encontrar um diálogo entre essas duas áreas do conhecimento?
Palacios - Quando passamos por momentos como o atual, fica muito evidente como essas duas áreas conversam claramente. Sabemos, por exemplo, que as doenças estão relacionadas a uma série de marcadores sociais. E a pandemia é muito diferente entre as camadas da população com mais ou menos acesso aos recursos.
Isso também fica claro quando pensamos na vacinação. Existe uma desconfiança muito grande sobre os imunizantes em países da Europa e nos Estados Unidos. Enquanto isso, não há doses suficientes em outros lugares, mesmo com populações que desconfiam menos das vacinas.
Nós ainda sabemos que o controle da pandemia e a efetiva melhora da saúde da população tem a ver com a adoção de políticas públicas e de uma assistência social. E o cenário político interfere diretamente nas iniciativas que podem prevenir as doenças.
É possível, portanto, encontrar uma enorme interação entre fatores sociais e de saúde. A graduação em ciências sociais permitiu complementar a minha formação para entender de forma mais abrangente o que realmente significam as intervenções em saúde pública.
BBC News Brasil - E como era o desenvolvimento de vacinas antes da atual pandemia? Como esse processo se modificou nos últimos meses?
Palacios - A princípio, não houve uma mudança significativa. Nós continuamos a fazer aquilo que já sabíamos antes da pandemia, principalmente na maneira como as pesquisas clínicas são realizadas.
O que de fato mudou foi a forma como esses dados são divulgados e, principalmente, a parte da colaboração entre os pesquisadores e o fluxo de informações ao redor do mundo. Nos últimos meses, compartilhamos muita informação entre diferentes atores que trabalham com temas relacionados à pandemia. Isso envolve desde a ciência básica até os maiores fabricantes do mercado. Foi uma troca muito rica e uma experiência valiosa. Essa foi, pra mim, a grande diferença.
Gostaria de chamar a atenção para a interação que houve com as agências reguladoras, como a Anvisa. Nunca é suficiente destacar o esforço incansável dessas pessoas, que trabalharam muito para avaliar os dados e dar orientações aos produtores de vacinas.
Outro ponto que mudou com a pandemia é a noção de que, quando a gente concentra uma grande quantia de recursos e elimina as fronteiras, é possível desenvolver soluções.
Por fim, vejo com bons olhos e dou as boas-vindas às novas tecnologias, como as vacinas de vetor viral e de mRNA, que nos permitem enfrentar de maneira mais ágil algumas doenças. Imagino que esse será um dos grandes legados dessa pandemia.
BBC News Brasil - E o senhor acredita que esses novos conhecimentos poderão ser aplicados no desenvolvimento de imunizantes para outras doenças, como aids, malária e dengue?
Palacios - Com certeza. Eu acho que aprendemos muito com essas novas tecnologias e elas nos permitiram evoluir mais rápido. A experiência atual também fez com que aprendêssemos muito sobre a produção de uma vacina e a segurança desses produtos, o que vai nos permitir explorá-las para outras doenças que acometem a humanidade.
Talvez uma grande dificuldade, no caso das outras enfermidades, seja encontrar um alvo específico, como detectamos a proteína S, da espícula do coronavírus. É preciso pensar nesse pedacinho, para o qual desenvolvemos um imunizante com poder de gerar uma boa resposta do sistema imunológico. Esse é um problema enorme quando falamos da malária, por exemplo.
Talvez as novas plataformas de vacina nos ajudem e possam servir de solução para outras doenças, mas não podemos dizer ainda que elas são fórmulas mágicas. Existem limitações que precisarão ser superadas. Mas, sem dúvida, a combinação de tecnologias pode ajudar a confrontar esses outros agentes infecciosos que causam tanto problema para a humanidade.
BBC News Brasil - No primeiro semestre de 2020, quando as primeiras vacinas começaram a ser desenvolvidas, o senhor achava que era possível ter tantas opções prontas, testadas e aprovadas em menos de um ano?
Palacios - Eu me lembro das entrevistas que dei naquele período e a previsão que fiz foi cumprida: à época, disse que estaríamos vacinando contra a covid-19 ainda no primeiro trimestre de 2021. De fato, era algo que sabíamos ser possível.
Mas por que estávamos tão confiantes? É que as principais nações já estavam desenvolvendo tecnologias para essas vacinas. Elas só precisaram modificar e adaptar projetos anteriores, que avaliaram imunizantes para as epidemias de Síndrome Respiratória Aguda (Sars), no início do século 20, e da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers), em 2011.
Essas tecnologias, baseadas nesse conhecimento acumulado nos últimos anos, foram adaptadas para esse novo coronavírus, o que nos permitiu fazer previsões mais curtas.
Outro ponto que contribuiu foi determinar o resultado que a gente buscava. As vacinas foram pensadas para dar uma resposta imune capaz de proteger contra os quadros mais graves da infecção, que levam a internações e óbitos. Se procurássemos uma proteção contra a infecção mais leve e inicial, a resposta imunológica teria que ser diferente e poderia demorar mais tempo para ficar pronta.
De certa maneira, a covid-19 nos oferece uma vantagem, que é o tempo de uma semana entre a invasão do vírus e a evolução para as formas mais graves. Esse intervalo é importante, porque a resposta imune gerada a partir da vacinação pode ser ativada, de modo a trazer uma proteção contra o agravamento da doença, que é o nosso objetivo principal.
BBC News Brasil - E como foi trabalhar diretamente no desenvolvimento da CoronaVac, na parceria entre a farmacêutica chinesa Sinovac e o Instituto Butantan?
Palacios - Eu estava numa posição dentro de uma instituição pública que, junto de toda a equipe, procurava meios de responder a esse anseio da humanidade [de ter vacinas no meio de uma pandemia]. Nesse sentido, há um senso de responsabilidade, de entendermos o nosso papel e a relevância de nosso trabalho.
Nós sempre prezamos muito pela integridade científica e ética. E nos valemos disso para que nosso trabalho fosse avaliado pelas agências regulatórias por sua força e qualidade. De um lado, a gente tinha essa pressa. Do outro, não podíamos deixar de lado o rigor científico e nem simplificar os processos éticos.
Baseado nisso, nós começamos a trabalhar e formamos uma equipe no Instituto Butantan que seguiu os protocolos e fez os testes clínicos.
Com isso, vale a pena destacar que, das seis vacinas aprovadas para uso emergencial pela OMS neste momento, a única que teve a liderança de um país da América Latina no seu desenvolvimento final foi a CoronaVac.
Esse é um diferencial das outras vacinas, porque a América Latina até foi um lugar onde aconteceram muitos testes, mas eles foram de protocolos e pesquisas desenvolvidas em outros país e que aqui só foram executados e operacionalizados.
No caso da CoronaVac, os testes clínicos foram desenhados completamente no Brasil e conseguimos ser uma dessas seis vacinas que chegou quase ao mesmo tempo no mercado.
Isso quando os outros imunizantes receberam uma série de apoios e subsídios de diferentes governos e instituições. Realmente, não dá pra entender como conseguimos fazer tudo isso numa circunstância tão difícil, comparativamente com pouco apoio, e entregamos rapidamente o produto.
E vale lembrar que a CoronaVac foi, durante os primeiros meses, a principal vacina da América Latina e isso nos faz sentir muito orgulho. Conseguimos responder não só a demanda do Brasil, mas de toda a região.
BBC News Brasil - Em janeiro, quando foram anunciados os resultados de eficácia da CoronaVac, o Instituto Butantan
Palacios - Existia uma expectativa muito grande em saber aqueles números. Isso acontecia dentro de nossa equipe, em toda a instituição e, claro, no país inteiro. Naquele momento, eu era o único que conhecia aquele resultado. Quando apareci no vídeo e divulguei a informação para os colegas do Instituto Butantan, eu finalmente pude dizer: nós temos uma vacina.
É claro que esse foi um momento muito significativo, pois ali nós já tínhamos um conjunto de dados que nos permitia afirmar que a CoronaVac não era mais uma candidata, mas podia ser encarada como uma vacina de verdade. Minha fala, claro, reflete a emoção que estava sentindo.
Mas hoje eu acho que essa nem foi a grande emoção que eu senti nesses últimos meses. Quando comecei a receber as imagens e os relatos de colegas sendo vacinados, dos indígenas que tomaram suas doses, aí sim fiquei muito emocionado.
O relato mais recente que me marcou veio de um colega do Paraná. Ele me disse que havia internado uma pessoa de 83 anos por uma outra causa que não era covid-19. A covid-19 não foi o motivo principal da hospitalização, e isso se deveu à vacina.
Um outro amigo, que atua em São Paulo, me disse que no hospital onde ele trabalha foi possível devolver a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para o tratamento dos pacientes com câncer. Nos últimos meses, esse local havia sido usado apenas para leitos de covid-19. Graças às vacinas, estamos conseguindo controlar melhor a pandemia.
Então eu acho que isso é ainda mais emocionante para mim do que aquele momento específico, em que anuncio a eficácia. Talvez, naquele dia, ainda não tinha caído a minha ficha e eu precisava amadurecer o que estávamos fazendo e os efeitos que isso teria. Quando a gente escuta os relatos e vê o sentimento das pessoas, isso realmente traz muita emoção.
BBC News Brasil - O desenvolvimento das vacinas foi marcado por muita disputa política, especialmente no Brasil. Isso influenciou de alguma forma o trabalho que vocês estavam fazendo?
Palacios - Tudo o que realizamos tinha que ser preservado da esfera política, especialmente das decisões que eram tomadas. Mas não se pode afirmar exatamente que o trabalho que a gente fez não teve repercussões políticas. E isso aconteceu, até porque a gente viu e ainda vê, com muita tristeza, que a presidência do Brasil ainda faz comentários que não condizem com a realidade, que são imprecisos em relação à CoronaVac. Isso foi uma constante durante todo o processo de desenvolvimento e continua até agora.
Eu acho que essa identificação da vacina com uma vertente política é totalmente inapropriada. A política não deveria ser a favor ou contra uma vacina. A política deveria promover as vacinas. E nisso também vemos como o Governo Federal tem uma forma de agir que não tem sido suficientemente constante e firme em prol da vacinação. E isso é algo que entristece.
Felizmente, o Programa Nacional de Imunizações tem sido forte em resistir a esse ataque às vacinas. A aceitação da população é grande porque existem décadas de trabalho, e isso permite contrastar essa falta de interesse em relação às campanhas de imunização [do Governo Federal].
O que a gente percebe é que, no lugar de o Governo Federal promover a pesquisa e a disseminação da vacinação, existem atores, inclusive líderes, com posturas inapropriadas e que não condizem com um apoio irrestrito à vacinação, como deveríamos esperar.
BBC News Brasil - Uma das críticas mais comuns aos produtores de vacinas nesses últimos meses foi a forma como se deu a divulgação dos dados de pesquisa. Muitos dos resultados foram apresentados em press releases e coletivas para a imprensa, com poucos dados publicados em artigos científicos. Como o senhor encara essas críticas?
Palacios - Desde o ponto de vista do desenvolvedor, e isso pode parecer até um pouco curioso para meus colegas cientistas, a prioridade é entregar os dados para a agência regulatória. Não é o artigo científico que faz uma vacina chegar ao braço das pessoas. É a avaliação rigorosa de uma agência regulatória que permite a aprovação do produto.
Estou na contracorrente de meus colegas, e tenho recebido críticas nesse sentido, mas essa foi a nossa prioridade: entregar o máximo de informações para as agências regulatórias para que elas pudessem tomar uma decisão. Porque, independentemente da publicação, somente com o aval das agências é que seria permitida a administração destas vacinas. E isso destaca mais uma vez o papel da agência regulatória, a importância da equipe científica que trabalha lá e de sua independência política.
Nesse contexto, é muito difícil estabelecer estratégias de comunicação apropriadas. E a gente viu, em várias vacinas, que precisamos aprender a nos comunicar melhor com a população. Essa é uma situação que é muito nova para nós. Antes, o nosso trabalho não era objeto dos holofotes da imprensa. Antes da pandemia, era difícil explicar o que eu fazia até para a minha família. Agora todo mundo sabe, e com bastante detalhe.
Essas informações [sobre as vacinas] saem nos jornais, são objeto das conversas no ônibus, no salão de cabeleireiro e nas festas da família. Eu acho que nós estávamos mal preparados para fazer essa comunicação para o público. Isso está sendo objeto de uma reflexão no Brasil e no mundo.
E essa questão da divulgação dos resultados já existia antes da pandemia. É normal que as companhias divulguem seus resultados preliminares para a imprensa. Sempre houve, claro, um interesse comercial das farmacêuticas e dos governos nisso. Mas isso não era um problema antes porque não se tratava de um objeto de tanto escrutínio público.
Agora, essa questão virou um problema. Nós somos assunto constantemente e não estávamos acostumados. E isso nos pegou mal preparados e espero que possamos aprender, enquanto coletivo de cientistas, a lidar melhor com essa situação.
BBC News Brasil - Deve ter sido um desafio enorme explicar o que é uma taxa de eficácia, o que é efetividade, como os estudos foram feitos...
Palacios - Vale a pena ressaltar o jornalismo especializado em saúde. Vocês fizeram um excelente trabalho. A gente vê um esforço dos meios de comunicação em transmitir a informação.
Mas existem questões de como se geram expectativas que são muito difíceis de lidar. Aqui novamente vemos como as ciências sociais são importantes, pois existe uma representação social do que é uma vacina.
E essa representação social indica que, quando se está vacinado, você evita por completo que algo aconteça. Mas, do ponto de vista científico, a gente já sabia que existiam as vacinas imperfeitas. São aquelas que não evitam por completo uma doença, mas, pelo menos, diminuem o risco de desenvolver as formas mais graves dela. E nós temos exemplos disso, como o imunizante que protege contra o influenza, o causador da gripe.
Houve uma falha de comunicação, que ainda não conseguiu ser superada. Precisamos ajustar a expectativa do público sobre o que esperar das vacinas contra a covid-19. E isso não é especificamente um problema que aconteceu só com a CoronaVac, mas com muitas outras.
Talvez os resultados de eficácia muito elevados das vacinas de mRNA contribuíram para gerar essa distorção na expectativa, que neste momento está sendo ajustada. Porque o objetivo de todos que estávamos desenvolvendo as vacinas era criar uma solução contra as formas graves de covid-19. A proteção contra as apresentações mais leves da doença era um bônus, algo a mais que esses produtos poderiam fazer.
Tem sido um trabalho ajustar a expectativa da população sobre o que esperar de uma vacina. E isso é algo que ainda está em curso e temos que seguir construindo coletivamente.
BBC News Brasil - Falando em trabalho contínuo, o mundo já tem mais de cinco vacinas contra a covid-19 à disposição, mas existem várias outras ainda na etapa de testes e desenvolvimento. Faz sentido continuar com esses estudos? Ou os produtos que temos agora já são suficientes?
Palacios - Quando vemos a distribuição de vacinas no mundo, é possível notar que há um déficit enorme. E acho que essa deveria ser uma das grandes preocupações nossas, como humanidade. Você vê como é irônico: nos países desenvolvidos, muitas pessoas recusam a vacina e há doses sobrando, enquanto nos países em desenvolvimento os indivíduos estão ansiosos para receber as vacinas, que não chegam.
Essa equação precisa ser resolvida. E uma das formas de resolvê-la é incluir mais atores a esse mercado de vacinas. Assim, eles conseguem trazer diferentes alternativas e aumentar a acessibilidade para todas as populações.
Essas outras vacinas também nos permitiriam evitar eventos adversos e confrontar a possibilidade de variantes que surgiram nos últimos meses. Outro benefício em ter mais opções é aquilo que temos visto sobre a alternância das doses entre diferentes produtores. Essa estratégia de intercambialidade tem se mostrado interessante, mas é algo que ainda está sendo estudado.
Há um segundo grupo de vacinas que está em desenvolvimento. Elas já trabalham para diminuir a transmissão do vírus. E por que elas são diferentes? A infecção por covid-19 começa principalmente pelo nariz e pelo aparelho respiratório superior. Então o tipo de imunidade que a gente precisa para controlar infecções nessa região está mediada por um anticorpo chamado IgA. E as vacinas injetáveis não são muito boas para gerar esse tipo de imunidade. Alguns grupos de pesquisa estão trabalhando com produtos focados em gerar uma resposta imune mais específica, que pode ajudar a controlar a transmissão do vírus.
Essas novas gerações de vacinas têm outros objetivos, distintos daqueles que foram inicialmente planejados para a primeira geração. Por isso é interessante que as pesquisas continuem.
Nem todas as candidatas vão sobreviver no mercado e há uma diferença na rapidez nos resultados, na aprovação e nas vantagens e desvantagens. Existe uma evolução natural desse conhecimento e seguramente, no decorrer dos próximos quatro ou cinco anos, o mercado vai se reduzir a algumas poucas vacinas que permitirão garantir um fluxo contínuo de produção para o estado pós-pandêmico.
BBC News Brasil - No final de julho e no começo de agosto, veio a notícia de que o senhor e alguns colegas tinham saído do Instituto Butantan. O que motivou essa decisão?
Palacios - Prefiro não comentar a minha saída ou a dos meus colegas que deixaram o instituto nesse período, se você me permite.
BBC News Brasil - Do ponto de vista científico, o senhor acha que é possível tirar aprendizados sobre esse período de um ano e meio desde o início da pandemia?
Palacios - Talvez uma das coisas mais importantes foi estreitar o compartilhamento de informação com nossos pares e fortalecer os vínculos de confiança. Esse aspecto foi definitivo para chegar aonde chegamos, como coletivo de cientistas. Sem essa troca, não conseguiríamos ter uma quantidade de vacinas disponíveis num prazo tão curto. Tivemos esse aprendizado e uma visão mais aberta sobre compartilhar, escutar os colegas e dividir ideias e informações.
A outra questão é aprender a se comunicar. E, nesse sentido, há uma janela de oportunidade que temos enquanto cientistas, de apresentar a importância da ciência para a sociedade. Nós precisamos tirar isso de lição e seguir em frente. Devemos continuar a mostrar esse conceito da ciência como atividade humana.
E aqui quero ressaltar que a ciência é uma atividade humana tão válida quanto qualquer outra. Não somos melhores ou piores que o camponês, que produz nossos alimentos, ou o motorista, que nos leva e nos traz nos ônibus. A ciência é uma atividade humana como qualquer outra, mas ela fica mais invisível para a sociedade. As pessoas estavam menos familiarizadas com o que era um cientista e com o que fazemos.
Essa foi uma oportunidade de ouro de trabalhar nesse sentido. E nós podemos dizer que há, sim, ciência sendo feita na América Latina e no Brasil e como isso é importante e decisivo. Dar esse valor social à ciência ajuda, inclusive, na escolha orçamentária e nas políticas públicas.
BBC News Brasil - Do ponto de vista da sociedade, quais são os desafios que teremos pela frente?
Palacios - Estamos com um problema muito grande em comunicar a questão do risco. Precisamos começar a trabalhar e empoderar as pessoas sobre o manejo de risco.
Eu venho de uma geração que trabalhou muito com HIV [o vírus causador da aids]. No início, nós tínhamos um mantra que era: use camisinha, use camisinha e use camisinha. E estamos quase repetindo isso agora: use máscara, use máscara e use máscara.
No caso do HIV, nós desconhecíamos a realidade social e o fato de que as pessoas eventualmente não iam utilizar camisinha. Isso aconteceria em algum momento. A gente nunca ensinou como tomar essa decisão de não usar camisinha. E estamos fazendo a mesma coisa agora.
Não estamos ensinando às pessoas qual o momento em que não precisa usar máscara ou quando utilizar. Temos que mostrar os recursos e as informações que todos deveriam ter em mente para tomar uma decisão de não usar máscara num determinado ambiente.
Com isso, as pessoas tomam decisões de forma totalmente desinformada, porque a gente não está ensinando adequadamente.
E existem muitos recursos tecnológicos para isso. Mesmo no HIV, para o qual não temos vacina até hoje, nós possuímos a profilaxia pré-exposição, a Prep, e várias outras alternativas que permitiram às pessoas equacionar o risco para cada situação. E nós ensinamos como fazer isso.
Deveríamos fazer o mesmo com a covid-19. A vacina nos deu uma grande plataforma para diminuir o risco de forma geral. Particularmente na América Latina, a vacinação tem uma boa aceitação, e isso vai dar uma vantagem importante em comparação a outros países onde existe uma hesitação, como nos Estados Unidos e na Europa.
Mesmo assim, precisamos começar a explicar para as pessoas sobre o manejo de risco. Um exemplo: você quer passar o Natal com familiares e amigos. Como planejar esse evento para que ele não acabe disseminando a covid-19 para pessoas vulneráveis, que vão acabar internadas? A gente tem que começar a ensinar isso e acho que essa é uma outra falha que precisa ser corrigida Ainda há tempo.
Em que circunstâncias é necessário usar máscaras? Em quais situações é desejável vesti-las e quais são aqueles momentos em que o risco é tão baixo que realmente não será preciso utilizá-las? Podemos aprender com o HIV para fazer algo parecido com a covid-19.
E precisamos também explicar o risco que estamos dispostos a tomar. Essa é uma discussão que vamos ter que fazer enquanto sociedade. Esses debates já ocorrem em outras latitudes. A Austrália e a Nova Zelândia, por exemplo, estão abrindo mão da política de infecção zero. Na França e nos Estados Unidos, foram criadas políticas para impulsionar a vacinação. Já na Inglaterra, o passaporte de imunidade parece estar caindo por terra.
Essa discussão precisa acontecer. A sociedade precisa saber que pode ter covid-19 mesmo depois de vacinada. E esse pode não ser um problema para uma pessoa jovem. Mas como proteger aqueles indivíduos mais vulneráveis? Como fazer a gestão do próprio risco? Isso será fundamental nesta etapa que está se aproximando.
Não vemos esse debate evoluir no Brasil e na América Latina de forma mais aberta e clara. Há um custo muito grande do distanciamento social, particularmente para as crianças e os adolescentes. Nós somos seres sociais, precisamos do convívio. Vamos ter que aprender a fazer isso de uma forma mais segura. E talvez esse seja o próximo desafio, a próxima fronteira a ser vencida.
BBC News Brasil - E o senhor vê alguma luz no fim do túnel? Há alguma perspectiva para o fim da pandemia de covid-19?
Palacios - Temos que entender o que significa efetivamente o fim da pandemia. Esse é um problema de conceito. Se você espera que a covid-19 seja erradicada, a resposta é não. É muito provável que nós vamos morrer sem ver o fim dela. São pouquíssimas as doenças infecciosas que foram completamente eliminadas. Quando falamos de quadros infecciosos respiratórios, isso é ainda mais difícil. Nessa perspectiva, portanto, a resposta é não.
Agora, a emergência pela situação pandêmica deve acabar quando avançarmos com a vacinação e conseguirmos estabelecer as medidas para retomar o convívio social. Isso é algo que, sim, esperamos. Em parte, esse cenário depende da oferta de vacinas e da aceitação da população. Isso vai determinar a rapidez para controlar a pandemia.
O Brasil, por exemplo, que tem avançado bastante no programa de imunização, precisaria entender que é um dever do país ajudar os vizinhos, como Peru, Bolívia, e Venezuela, que estão com mais problemas de acesso às doses.
Só quando todos os países e todas as pessoas saírem da pandemia é que podemos dizer que controlamos o coronavírus.
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