A maioria (78%) dos hospitais do País dispõe de estoques só para um mês de imunoglobulina, substância presente no plasma do sangue e usada como uma forma de repor anticorpos e com efeito sobre inflamações. Os dados são da Associação Nacional dos Hospitais Privados. Já o governo de São Paulo acusa o Ministério da Saúde de não enviar o componente. O estoque do Hospital das Clínicas, por exemplo, só é suficiente para mais uma semana.
A imunoglobulina traz anticorpos para várias doenças, como tétano, rubéola, gripes e difteria. Na regulação do sistema imunológico, ela é essencial no tratamento de doenças neurológicas, como a síndrome de Guillain-Barré, neuropatias, doença de Kawasaki e trombocitopenia imune, entre outras. Mais recentemente, vem sendo usado para tratamentos pós-covid.
"O governo federal segue falhando no envio de remédios de alto custo ao Estado de São Paulo, incluindo a imunoglobulina humana. Nenhum frasco foi recebido para atender pacientes no terceiro trimestre e ainda está pendente 57% do total requerido para o segundo trimestre. Vieram apenas 61,3 mil unidades, das 142 mil aprovadas pelo próprio ministério", diz nota da Secretaria da Saúde
A Anvisa, por sua vez, diz que vai facilitar a importação do produto.
"Em face do cenário de iminente risco de desabastecimento de imunoglobulina humana regularizada no Brasil, a Anvisa concedeu autorizações de importação deste produto, em caráter excepcional, por unidades de saúde, para seu uso exclusivo", avisou a agência. De acordo com a entidade, a autorização excepcional já foi concedida para o Hospital das Clínicas da USP e outros pedidos estão em análise. O governo Doria tem outra versão.
"O Hospital das Clínicas entrou com pedido de importação direta do medicamento em caráter emergencial com fornecedores ainda sem registro na Anvisa, além de manter consultas regulares junto a fornecedores nacionais que eventualmente tenham estoque", diz a nota.
Sem estoque
"A situação (não envio de imunoglobulina) dificulta o abastecimento de serviços que atendem pacientes graves e gravíssimos, como o Hospital das Clínicas que, no momento, possui estoque para aproximadamente uma semana", diz o Estado. O problema tem contornos nacionais.
A Associação Brasileira dos Planos de Saúde (Abramge) enviou ofício pedindo medidas para acelerar a importação. A intenção é que o medicamento integre a categoria dos kits de intubação de pacientes com covid. De acordo com a entidade, que reúne 170 hospitais ligados a planos de saúde, a maioria no Nordeste e nos Estados de São Paulo e Rio, nenhuma instituição tem estoque superior a 15 dias. "Esta crise não tem a dimensão da falta dos kits hospitalares. Estamos falando de um tipo mais específico de paciente, mas a situação é crítica", afirma o presidente da Abramge, Renato Casarotti.
A falta de imunoglobulina vem sendo identificada em outros levantamentos. Pesquisa da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) com 55 afiliados constatou que 81,48% estão com grave escassez de imunoglobulina. Mais de 78% deles só têm abastecimento para um mês. "Trinta dias é um prazo muito apertado para autorização, negociação, importação e recebimento. A maioria dos hospitais está com bastante dificuldade", avalia o diretor executivo da Anahp, Antônio Britto.
A Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas realiza um levantamento com os hospitais filantrópicos sobre as dificuldades de compra do produto, a necessidade de estoque e a disposição para importação. O objetivo, diz a entidade, seria "obter da Anvisa uma norma ou regulação que permita ter facilidade ou regras que possam tornar menos oneroso" o processo de importação da imunoglobulina.
Entre os fatores que explicam a ausência de imunoglobulina está o aumento do consumo do produto para tratamento das sequelas de de covid. A informação consta no ofício da Abramge à Anvisa. O medicamento, afirma, usado em terapia combinada com antibióticos ou antivirais para prevenir infecções bacterianas e virais graves, "mais recentemente, vem sendo usado para tratar complicações pós-covid-19".
A experiência na linha de frente da médica Ekaterini Goudouris, coordenadora do setor de Imunodeficiências da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia, comprova a tese. Ela destaca o aumento dos casos de doença inflamatória sistêmica pós-covid, principalmente em jovens. No Hospital Pediátrico da UFRJ, no Rio, onde trabalha, foram sete casos em agosto.
Outra razão para a escassez é a queda das doações de sangue com a pandemia. Segundo a Fundação Pró-Sangue, da Secretaria de Saúde de SP, os estoques estão extremamente baixos. A fundação opera com cerca de 22% da reserva necessária para atender a cem instituições pelo SUS. Leonisa Obrusnik, diretora da cadeia de suprimentos no Hospital Oswaldo Cruz, lembra que a imunoglobulina, não sendo produzida no mercado nacional, depende da importação. "Com o aumento do consumo, a quantidade importada não está sendo suficiente".
Embora tenha se agravado na pandemia, a escassez da imunoglobulina é um problema recorrente no País. Estima-se que estejam sem tratamento 70% dos pacientes com defeitos primários do sistema imunológico, que precisam da reposição de modo contínuo. Criado em 2017, o grupo "Eu luto pela imuno Brasil" - formado por pacientes para lutar contra a falta de medicação - tem como uma das fundadoras a funcionária pública Juçaíra Stella Giusti, de 56 anos, de São Carlos. "Vamos lançar uma campanha para conscientizar as pessoas sobre a importância da doação de sangue para a produção de medicamentos", diz a cirurgiã dentista.
Juçaíra recebe seu medicamento pelo plano de saúde. Recentemente, recebeu um comunicado do laboratório CSL Behring Brasil, informando "a descontinuação temporária da importação" do produto. Juçaíra explica que não há um "genérico" da imunoglobulina. No seu caso, um vidro com 4 g custa, em média, R$ 2 mil, valor custeado pelo seu convênio médico.
Luta por tratamento
Aos 4 anos, Bernardo precisa de aplicações semanais de imunoglobulina para sair minimamente de casa sem adoecer muito. Diagnosticado com imunodeficiência primária e uma cardiopatia congênita, o menino ainda passa por exames para saber se tem uma doença associada rara chamada Síndrome de DiGeorge ou outras doenças genéticas.
Em março de 2019, quando tinha 1 ano e 8 meses, os médicos solicitaram o tratamento com imunoglobulina humana endovenosa ou subcutânea a cada 20 dias. Ao longo de dois anos, ele conseguiu poucas sessões, apenas em momentos de internação ou cirurgias.
Em março deste ano, depois de muitas tentativas de tratamento, a mãe, Maressa Pedrosa Silva, solicitou o tratamento via judicial. A Justiça de São Paulo determinou, em primeira instância, o atendimento integral pela operadora do convênio. "Foram dois anos de luta para garantir o tratamento, que só veio após liminar e, posteriormente, decisão judicial", conta a mãe, que tem de 36 anos.
Após a disputa judicial, a família enfrenta agora a escassez da imunoglobulina. Pesquisa da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) com 55 afiliados constatou que 81,48% estão com grave escassez de imunoglobulina.
"Por enquanto, a clínica ainda tem estoque de imunoglobulina subcutânea. Mas já recebemos o aviso que a imunoglobulina humana endovenosa acabou em vários hospitais de São Paulo e que a subcutânea está sem estoque e sem fornecimento pela farmacêutica", afirma Maressa, que trabalha como doula. "É uma incógnita até quando meu filho terá acesso ao tratamento", afirma.
A imunologista Mariana de Gouveia Pereira Pimentel, do Centro de Infusão e Imunização Bioma, responsável pelo tratamento de Bernardo, explica que a escassez de imunoglobulina é mundial. "Quando soubemos da falta, fizemos uma compra para manter o tratamento dos pacientes. Eu tenho mais três ou quatro meses", explica a especialista, que também é integrante do departamento científico de Imunodeficiências da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai).
Rede pública
A especialista afirma que ainda não existem impactos do desabastecimento no Sistema Ùnico de Saúde (SUS) porque ele utiliza outros fornecedores - e não os fabricantes americanos. "O SUS ainda tem o produto porque faz compra de fabricantes chineses e coreanos. Desde a coleta até a entrega final, o processo pode durar 18 meses. A expectativa é de que a distribuição se normalize até o fim do ano ou começo do ano que vem", prevê. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.