A publicação de relatos de casos sobre pessoas que ficaram com parte do rosto paralisada depois de receberem o imunizante da Pfizer/BioNTech levou o Canadá a incluir a chamada paralisia de Bell na lista de efeitos colaterais da substância. Porém a primeira análise populacional de grande escala sobre aumento de risco da condição em imunizados demonstra que os benefícios das vacinas são muito superiores à potencial ocorrência da adversidade.
O estudo, publicado na revista The Lancet Infectious Diseases, avaliou casos da paralisia facial unilateral, caracterizada por uma inflamação temporária nos nervos, na população vacinada de Hong Kong. Essa rara condição desaparece sozinha em até seis meses em 70% dos pacientes.
Nos demais, o uso de corticoides reverte o dano em quase 100% das vezes. Durante os ensaios clínicos das vacinas de mRNA (Pfizer e Moderna) e da CoronaVac, houve relatos entre os imunizados. Além disso, já foram publicados alguns estudos de caso de pessoas com a face paralisada após serem vacinadas.
Essas ocorrências levaram a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) a prever a paralisia de Bell como efeito colateral tanto da substância da Pfizer quanto da CoronaVac. Na semana passada, o Canadá listou a adversidade na bula da vacina de mRNA, mas, até agora, não é possível dizer qual a relação entre o fármaco e a inflamação facial.
No estudo publicado ontem, os pesquisadores analisaram casos de paralisia de Bell relacionados às duas vacinas aprovadas em Hong Kong — CoronaVac e BNT162b2 (Pfizer). A pesquisa usa dados do sistema de farmacovigilância da autoridade reguladora de medicamentos da região administrativa, que abrange relatórios de eventos adversos registrados por profissionais de saúde em todo o território.
As ocorrências de paralisia de Bell foram incluídas na análise quando diagnosticadas dentro de 42 dias da primeira ou da segunda dose da imunização. Os pesquisadores também conduziram um estudo de caso-controle, com registros de saúde eletrônicos de todo o território, incluindo 298 casos de paralisia de Bell e 1.181 controles correspondentes.
Notificações
Entre 23 de fevereiro de 2021 e 4 de maio de 2021, 28 ocorrências clinicamente confirmadas de paralisia de Bell foram identificadas entre as 451.939 pessoas que receberam pelo menos uma primeira dose de CoronaVac (equivalente a 3,61 casos por 100 mil doses administradas) e 16 entre as 537.205 que tomaram pelo menos uma primeira dose da Pfizer (correspondente a 2,04 casos por 100 mil injeções aplicadas).
Ao analisar dados de 2010 a 2020 (ou seja, antes que existissem as vacinas), os pesquisadores estimaram que o risco de paralisia de Bell em Hong Kong é de cerca de 27 casos por 100 mil pessoas, por ano. As estimativas globais variam de 15 a 30 ocorrências por 100 mil pessoas, anualmente.
Com os dados das pessoas vacinadas, os cientistas constataram que, para cada 100 mil imunizadas com CoronaVac, 4,8 podem desenvolver paralisia de Bell. No caso da Pfizer, o risco aumentado foi equivalente a dois casos em 100 mil vacinados. Os autores ressaltam que mais estudos de larga escala são necessários para avaliar a associação entre a paralisia de Bell e a BNT162b2.
“Nosso estudo sugere um pequeno aumento do risco de paralisia de Bell associado à vacinação com CoronaVac. No entanto, ela permanece um evento adverso raro e temporário”, disse, em nota, o autor principal, Ian Chi Kei Wong, professor da Universidade de Hong Kong. “Todas as evidências até o momento, de vários estudos, mostram que os efeitos benéficos e protetores da vacina covid-19 inativada (caso da CoronaVac) superam em muito qualquer risco. A vigilância contínua, por meio de estudos de farmacovigilância como o nosso, é importante para calcular com níveis crescentes de confiança os riscos de eventos adversos raros.”
Desconhecimento
Os autores observam, ainda, que não podem apontar uma relação causal entre a paralisia de Bell e a vacinação em nenhum caso individual que entrou no estudo. Segundo eles, o mecanismo pelo qual os imunizantes podem — em casos muito raros — levar à inflamação facial permanece desconhecido.
Outros estudos identificaram ocorrências também pouco frequentes da paralisia após algumas vacinas inativadas, como a da gripe. Um levantamento anterior, usando o Banco de Dados de Farmacovigilância da Organização Mundial da Saúde, por sua vez, não relatou risco maior seguido à vacinação com substâncias de mRNA.
“De uma perspectiva clínica e orientada para o paciente, nenhum dos estudos publicados até agora fornece evidências definitivas para ajudar a escolher uma vacina específica, no caso de pessoas com histórico de paralisia de Bell”, diz Richard Doan, infectologista da Universidade de Toronto, no Canadá, que não participou da pesquisa. “Enquanto esperamos por evidências conclusivas sobre a paralisia facial associada à vacina, uma certeza permanece: o benefício de ser vacinado supera qualquer risco possível.”
Kevin McConway, professor de estatística aplicada da Universidade Open, no Reino Unido, também não descarta que os casos relatados até agora sejam mera coincidência. “A paralisia de Bell não é comum, mas também não é extremamente rara. São reportados entre 20 e 30 casos por ano para cada 100 mil pessoas globalmente, o que significaria que existem entre cerca de 13,5 mil e 20,5 mil ocorrências anuais no Reino Unido”, exemplifica.
“Portanto, você esperaria que alguns casos de paralisia de Bell se desenvolvam logo após a vacinação apenas por coincidência. Meu sentimento é que, mesmo se houver uma relação causal com a vacinação (e sobre isso certamente não se sabe nada), é provável que aconteça tão raramente, que isso não afete o equilíbrio entre o risco de possíveis efeitos colaterais da vacina e o de consequências ruins se você não for imunizado e pegar covid-19”, ressalta.