Um dos maiores entraves na luta contra a covid-19 são as mutações que o vírus causador da doença sofre à medida que se propaga. Para ajudar a amenizar esse problema, que pode até comprometer a efetividade das vacinas, pesquisadores dos Estados Unidos desenvolveram uma ferramenta capaz de prever o surgimento de novas cepas do Sars-CoV-2. O resultado do trabalho, publicado no periódico científico Cell Reports, também pode ajudar no desenvolvimento de imunizantes para outros micro-organismos, como o da influenza (gripe) e o HIV.
Os cientistas se concentraram nas proteínas de pico do novo coronavírus, descritas por eles como pequenas protuberâncias presentes na superfície do Sars-CoV-2. “Sob um microscópio, elas podem aparecer como uma coroa. É daí que vem o nome corona. Todas essas proteínas se ligam às células humanas como uma chave em uma fechadura. Quando os anticorpos as reconhecem, eles se fixam nelas e impedem que se conectem às células do nosso organismo. Assim, previnem a infecção”, detalham os autores do estudo.
Porém, quando as proteínas de pico sofrem mutação, as reações das células de defesa do corpo humano podem não ser tão eficientes. “Existem mutações na proteína spike, a principal estrutura do coronavírus, que impedem um anticorpo de entrar e reconhecê-la. Assim como cortar o cabelo, você parece uma pessoa diferente. Parece um vírus diferente para o anticorpo”, ilustra, em comunicado, Timothy Whitehead, professor-associado de engenharia química e biológica da Universidade do Colorado e um dos autores do estudo.
Os responsáveis pela pesquisa acreditam que isso aconteceu com a cepa considerada a mais transmissível do Sars-CoV-2. “É o caso da variante Delta, que tem atrapalhado o combate ao vírus nos últimos meses. As mutações nas proteínas do pico tornaram-na mais contagiosa e reduziram a eficácia de algumas terapias com anticorpos”, relatam.
A fim de evitar esse problema, eles desenvolveram uma levedura geneticamente modificada para expressar algumas proteínas de pico do Sars-CoV-2. Tiveram a ideia da estratégia a partir de resultados obtidos por outro grupo de cientistas. “Descobriram em 2020, enquanto faziam experiências com massa fermentada, que a levedura cresce muito rapidamente”, contam.
Devido a esse crescimento acelerado, a equipe americana pôde observar uma grande variedade de mutações se desenvolverem na mesma velocidade em que a levedura, em taxas mais rápidas do que as mutações emergem em tempo real. “Isso nos dá uma vantagem inestimável”, enfatizam.
A aposta é de que, com o uso do método, seja possível acelerar medidas para combater o novo coronavírus, principalmente as voltadas para o desenvolvimento de imunizantes. “Nós criamos uma ferramenta preditiva que pode dizer quais anticorpos serão eficazes contra as cepas circulantes do vírus”, afirma Whitehead.
A equipe chegou à Delta antes de ela se disseminar pelos países e relata que já identificou outras cepas que têm se mostrado como possíveis encalços para o sistema imunológico humano, mas não deram detalhes sobre elas. Há a intenção de divulgar esses dados para pesquisadores que trabalham em busca de terapias contra a covid-19.
Reforço artificial
Segundo José Eduardo Levi, virologista da empresa GeneOne e do Laboratório Exame, em Brasília, a ferramenta pode ser bastante útil para o desenvolvimento de abordagens mais eficazes contra o Sars-CoV-2. “O mais interessante desse método é que, ao conseguir prever quais as mutações que os anticorpos não respondem, você pode usar essa informação para a criação de anticorpos monoclonais mais eficientes. Essa é uma terapia que tem sido bastante testada para o tratamento da covid-19: células de defesa são criadas em laboratório para combater o vírus”, detalha.
O especialista também ressalta que as vacinas podem se tornar ainda mais eficientes com a ferramenta. “É algo que pode ser adaptado com facilidade principalmente no desenvolvimento de imunizantes de RNA, que usam essa informação genética do vírus como base da proteção. Você apenas usaria os dados observados na levedura e os copiaria para as vacinas, refinando esse direcionamento e gerando a proteção”, explica.
Mas José Eduardo Levi lembra que há o risco de mutações vistas em laboratório não se repetirem no mundo real. “É algo que não podemos ter certeza. Talvez, o que acontece na levedura não se repita no organismo humano. Temos que cogitar essa possibilidade também”, diz.
Os criadores do método cogitam o uso dele também para ajudar no combate a outras enfermidades. “Quando a pandemia começou, vimos que essa nossa técnica poderia ajudar a combater a covid e também doenças que já nos atrapalhavam bastante”, conta Irene Francino-Urdaniz, coautora do artigo. “Você pode usá-la para mapear as futuras mutações do vírus influenza, do HIV, para outras doenças virais e até para pandemias futuras”, ilustra Whitehead.
Jose Eduardo Levi concorda com a ampliação das possibilidades. “Essa estratégia de usar o RNA como base para as vacinas é algo que vai crescer. Com certeza, teremos análises mais refinadas quanto às mutações que tomarão conta dessa área e englobarão outros vírus.”