MEIO AMBIENTE

Centro-Oeste e Amazônia sofrerão aquecimento até duas vezes maior que média global

Relatório sinaliza a gravidade da situação do Brasil, com risco de forte seca na Amazônia e no Centro-Oeste

No pior retrato já pintado sobre as mudanças climáticas produzidas por atividades humanas, um comitê formado por quase 1 mil cientistas de 195 países alerta que algumas consequências do aquecimento global já são irreversíveis e que não há precedentes para o cenário dessas alterações. A pouco mais de dois meses da abertura da 26ª Conferência das Partes das Nações Unidas (COP) sobre o tema, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) divulgou, ontem, a parte 1 do documento, que investiga as causas dessas mudanças.

Todas as evidências apontam para a ação antropogênica. Para o Brasil, o cenário é ainda mais grave: algumas regiões semiáridas, incluindo o Centro-Oeste e parte da Amazônia, sofrerão uma taxa de aquecimento até duas vezes maior do que a média global.

Com o aumento da temperatura, o relatório prevê mais dias secos e maior frequência de estiagem no norte da Amazônia, com, no mínimo, dois meses de temperaturas máximas de 35º nessa região da floresta até o fim do século. Graves secas e queimadas também atingirão o bioma e parte do Centro-Oeste, com perdas agrícolas acentuadas. “No Brasil, onde grande parte da energia já está limpa, o desafio é eliminar todo o desmatamento — a principal razão pela qual o país é o sexto maior emissor de gases de efeito estufa do mundo”, observa Maurício Voivodic, diretor executivo da WWF-Brasil.

Na semana passada, o vice-presidente Hamilton Mourão, chefe do Conselho Nacional da Amazônia Legal, admitiu que o país não conseguirá cumprir a meta de redução do desmatamento em 10%, tendo como referência agosto de 2020 e julho de 2021. “A melhor ciência do planeta está nos mostrando que o presidente Jair Bolsonaro escolheu o caminho da catástrofe, e é isso que não podemos aceitar: os interesses eleitorais e setoriais não podem prevalecer sobre o bem comum da nação”, completa Voivodic.

O IPCC não faz pesquisas científicas, mas analisa, periodicamente, o que há de mais novo em estudos sobre o clima e elabora um robusto documento contextualizando essa produção com o cenário atual de emissões de gases de efeito estufa, os vilões por trás do aquecimento do planeta. A publicação serve de base para a formulação de políticas públicas, em especial para as discutidas durante as COPs, quando 195 países traçam metas para frear o aquecimento global.

Uma tarefa bastante difícil, considerando que, segundo o relatório, esse aquecimento é pior e mais rápido do que se acreditava anteriormente. As estimativas são de que, em 2030 — 10 anos antes do previsto —, a Terra já esteja 1,5ºC mais quente que os níveis pré-industriais (século 19). Um aumento do tipo, alerta o IPCC, já é o suficiente para agravar os já perturbadores extremos climáticos, como temperaturas recorde, além de desastres como passagem de furacões e inundações. Além disso, se não houver reduções drásticas das emissões, o mundo poderá ficar ainda mais quente antes de 2050, chegando a um aumento de 2ºC.

“O relatório enfatiza aos negociadores do clima, mais uma vez, a necessidade de reduzir as emissões mais do que parece provável atualmente, a fim de atingir as metas de Paris”, disse, em uma apresentação on-line para jornalistas, Nigel Arnell, professor de ciência do Sistema Climático da Universidade de Reading e autor principal do Capítulo 12 do relatório (Informações sobre mudanças climáticas para impacto regional para avaliação de risco).

Em 2015, ao fim da COP-21, foi assinado o Acordo de Paris, no qual as 195 nações participantes concordaram em promover medidas para evitar que a temperatura aumentasse mais que 1,5ºC até 2050. Porém, a avaliação periódica dessas metas mostra que elas foram insuficientes e que os governos precisam se empenhar mais.

“O IPCC diz claramente que é inequívoca a interferência humana no clima. Não é mais um debate sobre se as ações humanas dão causa à crise climática, mas do quanto”, diz Stela Herschmann, especialista em política climática do Observatório do Clima. “Além do mais, apesar de dizer que a chance de 1,5ºC ainda existe, o documento também mostra que a janela para isso é estreita, e não comporta governos negacionistas.”

Além do recado aos negociadores da COP-26, Nigel Nargell destaca uma segunda importante mensagem do documento. “O relatório destaca — com mais urgência do que o último documento, de 2013 — a importância de intensificar nossos esforços coletivos para nos adaptarmos às mudanças climáticas e aumentarmos a resiliência a desastres climáticos mais frequentes e extremos no futuro. Eventos recentes mostraram que todos estamos expostos a riscos climáticos.”

“Vai piorar”

Com 1,1° a mais que o século 19, as consequências do aquecimento já podem ser sentidas. “O relatório reitera o que já se sabe há mais de uma década — o clima está esquentando, as atividades humanas são o principal motor e vai piorar. O que é diferente, agora neste relatório, é que os efeitos do aquecimento global não estão mais em um futuro distante ou em cantos remotos do mundo”, afirma Michael Byrne, professor de ciências da terra e ambientais da Universidade de Oxford e colaborador do relatório.

Eventos climáticos extremos — desde o recorde de calor no Canadá a enchentes na Alemanha e incêndios florestais na Califórnia e na Grécia — agora carregam as marcas da mudança climática e estão causando devastação em todo o mundo, semana após semana. Para mim, como cientista do clima, o relatório é particularmente significativo porque é o primeiro a apresentar evidências claras ligando esses eventos extremos às atividades humanas.

Essa evidência era inconclusiva em 2013, na época do relatório anterior do IPCC; agora, é irrefutável.” A Califórnia passa por um dos piores incêndios da história do estado e, até domingo, haviam sido destruídos 198.007 hectares. No sábado, o governador Gavin Newsom visitou os restos carbonizados de Greenville e afirmou que os incêndios foram “induzidos pelo clima”.

Mesmo com metas e ações mais comprometidas, o relatório alerta que algumas consequências do aquecimento global já são irreversíveis, caso do degelo e da elevação do nível do mar, que não se recuperarão dos impactos da atividade humana “por séculos ou milênios”. O fenômeno é associado ao degelo, especialmente das calotas polares, devido às temperaturas mais altas. Segundo o IPCC, o nível do mar subiu 20cm entre 1901 e 2018. A taxa de elevação saltou de 1,35mm por ano entre 1901 e 1990 para 3,7mm por ano entre 2006 e 2018.

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Líderes pedem ações urgentes

A divulgação do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) provocou reações de formuladores de políticas públicas. “Este momento requer que os líderes mundiais, o setor privado e os indivíduos atuem juntos com urgência e façam tudo o que for preciso para proteger nosso planeta. Não podemos atrasar mais uma ação climática ambiciosa”, disse o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, em nota.
Maior emissor mundial, ao lado da China, os EUA chegaram a se retirar das negociações climáticas no governo Trump, mas o democrata Joe Biden assumiu com a intenção de transformar o país em líder do combate ao aquecimento global. Segundo Blinken, os EUA se comprometeram a reduzir as emissões, em 2030, em 50% a 52%, em relação aos níveis de 2005.
O vice-presidente da Comissão Europeia, o holandês Frans Timmermans, disse que o relatório do IPCC mostra a “extrema urgência de atuar agora”. “Não é muito tarde para frear a tendência e evitar uma espiral incontrolável de mudança climática, desde que atuemos com determinação agora, e todos juntos”, afirmou, no Twitter. “Espero que o relatório (...) seja um sinal de atenção para que o mundo aja agora, antes de nos reunirmos em Glasgow, em novembro, para a crucial cúpula COP-26”, reagiu o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, anfitrião do evento. “A próxima década será decisiva para o futuro do nosso planeta. Sabemos o que precisa ser feito para limitar o aquecimento global: relegar o carvão ao esquecimento e mudar para fontes de energia renováveis, proteger a natureza e financiar o clima”, acrescentou o premiê.
Segundo o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, o documento destaca a necessidade de se buscar alternativas aos combustíveis fósseis. “Esse relatório deve pôr fim ao carvão e às energias fósseis antes que destruam o nosso planeta”, disse em um comunicado. Para a ativista Greta Thunberg, o IPCC confirma que “estamos em uma emergência”. “Cabe a nós sermos corajosos e tomar decisões com base nas evidências científicas fornecidas nesses relatórios. Ainda podemos evitar as piores consequências, mas não se continuarmos como hoje e não sem tratar a crise como uma crise.”
Em nota, o Ministério do Meio Ambiente brasileiro informou que o compromisso do país “é uma meta percentual de redução de emissões frente ao ano base de 2005 e, por ser de longo prazo, não foi e não deve ser alterada a cada revisão metodológica.”
Em 2019 e 2020, o presidente Jair Bolsonaro “ganhou” o fóssil do ano, antiprêmio que destaca os maiores contribuidores para as mudanças climáticas. Agora, na COP-26, o país deverá ser ainda mais pressionado, acredita Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima. “Os resultados do IPCC implicam que a redução drástica do desmatamento na Amazônia será um elemento essencial da conta da estabilização do clima nos próximos anos. Para azar da humanidade, o presidente do Brasil é Jair Bolsonaro, que quer ver a floresta no chão. Para azar de Bolsonaro, os brasileiros e o resto do mundo não vão aceitar isso calados.”

"Os resultados do IPCC implicam que a redução drástica do desmatamento na Amazônia será um elemento essencial da conta da estabilização do clima nos próximos anos”

Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima.