Sabe aquela travessia perigosa e difícil por terras congeladas em busca de um bando e um local seguro para viver? Pois é, melhor você começar a procurar um mamute, um tigre dente de sabre e um bicho preguiça para te ajudar a lidar com as novidades do tempo nos próximos anos. Isso porque as mudanças climáticas podem estar mais presentes na nossa rotina do que imaginamos.
As ondas de frio que surpreenderam o Brasil em julho e de calor que passaram pelo hemisfério norte no mesmo período são apenas alguns eventos extremos que se repetirão com frequência cada vez maior ao redor do globo. Outros acontecimentos perigosos como as enchentes na Alemanha e na China, também podem retornar em períodos cada vez menores e em diferentes pontos da terra.
É o que explicaram ao Correio os pesquisadores Tercio Ambrizzi, professor titular do Departamento de Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Incline/USP, e Andréa Santos, professora titular do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e secretária Executiva do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas.
Mas, afinal, esse inverno está anormal?
A rigor, não. De acordo com o professor Ambrizzi, é comum que alguns invernos tenham temperaturas mais baixas de tempos em tempos. Em 2013, por exemplo, a onda de frio que atingiu o país no mês de julho causou temperaturas muito abaixo da média de Norte a Sul do país.
“Ondas de frio sempre ocorrem ou podem ocorrer ao longo do inverno. E algumas podem ser intensas. Particularmente, essa (registrada na última semana de julho) está bem intensa e avançou muito em toda parte central”, explica, lembrando que aquele foi o terceiro evento do tipo seguido no mês passado.
Segundo o pesquisador, o que transformou o inverno deste ano em algo peculiar é a memória das pessoas — que acaba comparando as temperaturas deste ano com a de anos imediatamente anteriores. Já que 2019 e 2020 tiveram temperaturas mais altas que a média, automaticamente tratamos o frio deste ano como algo ainda mais raro do que realmente é.
“Este ano, comparado com os anos (imediatamente) anteriores, realmente está muito mais frio, a média de temperatura está muito mais baixa. Na memória recente, tivemos vários períodos de veranicos durante o inverno, os invernos estão sendo mais quentes”, lembra.
Quer dizer, então, que está tudo normal?
Não é bem assim! A professora Andréa Santos explica que, embora exista a variabilidade natural do clima, os eventos mais extremos — isto é, com recordes de temperatura alta no verão e baixa no inverno, além de tornados, enchentes e outras catástrofes climáticas — têm sido cada vez mais comuns. Neste ano, por exemplo, enquanto o Brasil era surpreendido com a chuva congelada em Mato Grosso do Sul, a Sibéria registrava recorde de calor, com picos que chegaram perto de 50 ºC.
No início de julho, o Canadá também registrou impensáveis 49ºC. Isso sem contar as enchentes que arrasaram boa parte da Europa continental, em especial Alemanha e Bélgica, e deixaram mais de 200 mil desabrigados na China.
“Mudanças abruptas nos padrões climáticos são atribuídas às mudanças do clima (como um todo), que cria uma ‘bagunça’ nos regimes de naturais. O IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas) vem apresentando evidências científicas preocupantes. Vivemos uma emergência climática. Alguns ecossistemas já estão próximos a chegar no tiping point (traduzido como ponto de inflexão) ou ponto de não retorno”, conta Santos.
Ela explica que, quando esse limite chega, as consequências tornam-se inevitáveis e irremediáveis. “Um ponto de inflexão no sistema climático é um limiar que, quando excedido, pode levar a grandes mudanças no sistema climático e muitas vezes irreversíveis. Isso está apavorando a nós, cientistas. Por exemplo, o derretimento do gelo do Ártico. Acredita-se que alguns grandes mantos de gelo na Antártica já tenham ultrapassado seus pontos de inflexão, o que significa grandes elevações do nível do mar nos próximos séculos”, detalha.
Ainda há esperança?
Apesar de parecerem tão distantes no dia a dia, algo como uma ficção científica futurista e pós-apocalíptica — quem se lembra de ter ido ao cinema assistir ao longa 2012 de Roland Emmerich e ter ficado em choque com o mar engolindo o morro do Corcovado? — as mudanças climáticas estão mais presentes na rotina de cada um de nós do que gostaríamos. Isso quer dizer que elas também são fortemente induzidas por ações humanas.
“Fica claro pelos dados observados desde 1950 que a temperatura média da terra está aumentando. Quando você compara isso com a evolução humana, vê que coincide com os períodos de maior desenvolvimento tecnológico, isso levou ao aumento do maior consumo de água, de energia, de uso do solo. É uma resposta do que está acontecendo na atmosfera com os gases do efeito estufa”, narra Ambrizzi.
Lembra nos primeiros anos da escola quando aprendíamos que o efeito estufa é um escudo natural que mantém a terra aquecida e essencial para a vida no planeta? O professor da USP explica que essa camada de gases está se espessando conforme a atividade humana avança e isso faz com que o processo de aquecimento do planeta siga em um ritmo muito mais acelerado do que aconteceria sem a interferência das pessoas. “Há esse aumento e a atmosfera está reagindo gerando eventos extremos de temperatura, seca e chuva em intervalos cada vez menores”, observa.
A pesquisadora da UFRJ tem conclusão semelhante. “Já aquecemos cerca de 1,2 °C na temperatura média do planeta. Algumas áreas do globo já ultrapassaram os 2 graus de aquecimento. Infelizmente a humanidade escolheu seguir a trajetória mais perigosa em termos de desenvolvimento, que é pautado na queima de combustíveis fósseis para gerar energia”, descreve Santos.
Embora Ambrizzi seja um pouco mais otimista que ela, ao afirmar que ainda é possível desacelerar o ritmo de aquecimento da Terra e diminuir o efeito devastador das mudanças climáticas, ambos entendem que a solução para o problema é uma mudança coletiva de postura. A nível individual, com “trabalho de formiguinha”, fazendo escolhas conscientes e buscando alternativas sustentáveis sempre que possível. “Se a padaria é a 500 metros da sua casa, talvez seja melhor ir a pé ou de bicicleta”, exemplifica Ambrizzi.
A nível governamental, um bom começo seria levar a sério pactos climáticos, como o acordo de Paris. E, no caso de países com democracia representativa, como é o caso do Brasil, pensar na questão ambiental como uma pauta política. “A gente tem que, de fato, começar a criar alianças. O setor privado, público, a academia, que tem um papel importante em todas essas discussões que são baseadas em ciência. Os dados são realmente preocupantes e temos que pensar em ações pelo clima”, conclui Santos.