À medida que os primeiros testes das vacinas para a covid-19 mostravam resultados, cientistas passaram a investigar a duração da proteção conferida por elas, medindo o nível de anticorpos neutralizantes no sangue dos voluntários ao longo do tempo. Embora já se soubesse que essas taxas decaíam com os meses, as variantes do Sars-CoV-2, especialmente a Delta, encurtaram a imunidade adquirida, levantando o debate sobre a necessidade de uma dose adicional após a vacinação completa. Ou seja, uma terceira injeção no caso de CoronaVac, AstraZeneca, Pfizer e Moderna, ou uma segunda, para quem tomou a substância da Janssen.
Detectada em outubro do ano passado na Índia, a Delta se espalhou pelo mundo e se tornou a variante prevalente desde junho. O aumento da circulação foi associado ao crescimento de infecções entre pessoas já vacinadas. Estudos indicam que, de fato, a cepa reduz a eficácia dos imunizantes — embora, ressaltem os cientistas, eles continuem a proteger contra o vírus e a doença. “Nenhuma vacina é completamente protetora contra a infecção com a variante Delta. Isso não é inesperado, pois a queda da imunidade após a vacinação é relativamente comum, e o objetivo da vacinação é principalmente proteger o indivíduo contra doenças graves e sintomáticas, e não contra a infecção per se”, destaca Penny Ward, professora de medicina farmacêutica no Kings College de Londres.
A versão indiana do Sars-CoV-2 acabou antecipando a discussão sobre quando revacinar a população, especialmente as pessoas mais vulneráveis: idosos e imunossuprimidos. Uma discussão que pegou fogo quando a Pfizer, em 8 de julho, divulgou uma nota para investidores com dados preliminares de um estudo ainda não publicado que justificariam, segundo a farmacêutica, o pedido de autorização, nos Estados Unidos, da dose de reforço. A pesquisa em andamento mostrou que uma terceira injeção aumenta de cinco a 10 vezes o nível de anticorpos contra a cepa original e a variante beta, comparado ao regime de dupla imunização. O comunicado também destacava que um estudo israelense, ainda não revisto por pares, indicou redução de anticorpos em apenas seis meses. Uma semana depois, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que não havia evidências científicas suficientes para adotar, no Brasil, o reforço, e que dois estudos — um da AstraZeneca e outro da Pfizer — haviam recebido autorização para fazer testes sobre segurança e eficácia da vacina adicional no país.
As pretensões da Pfizer e da BioNTech, alemã que desenvolveu a vacina anticovid com o laboratório norte-americano, ganharam mais força na segunda semana de agosto, quando anunciaram dados preliminares indicando que a dose adicional também protege mais contra a variante Delta. Os Estados Unidos acabaram aprovando o reforço para idosos e pessoas que, devido a doenças crônicas ou tratamentos médicos, têm o sistema imunológico debilitado. Além dos EUA, diversos países, como Israel, Alemanha, Reino Unido, Chile e França, aprovaram a dose adicional para os mais velhos. No Brasil, idosos e imunossuprimidos devem ser os primeiros a receber o reforço, a partir de setembro.
“Para imunossuprimidos e idosos, com certeza há uma necessidade mais urgente desse reforço. Até porque as pesquisas têm mostrado que são essas pessoas que têm uma queda mais expressiva na proteção. Em outras pessoas, também há queda, mas não é tão nítida quanto nessa população”, diz César Carranza, infectologista do Hospital Anchieta, em Brasília. Um estudo inglês e escocês com 600 pessoas divulgado na semana passada mostrou que aproximadamente 11% dos imunocomprometidos não conseguem gerar anticorpos quatro semanas após duas doses, por exemplo. Por sua vez, uma pesquisa canadense indicou um aumento substancial da proteção em transplantados depois do reforço com a substância da Moderna: o índice de anticorpos passou de 18% para 55%.
Também na semana passada e na anterior, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDCs) dos EUA publicaram, em seu site, estudos produzidos por cientistas do próprio órgão demonstrando a redução da efetividade das vacinas de mRNA (Pfizer e Moderna) depois que a Delta se tornou predominante. Com isso, os CDCs divulgaram um plano que depende da aprovação da Food and Drugs Administration (FDA) para aplicar o reforço na população em geral, não apenas em idosos e imunossuprimidos. O Reino Unido também pretende fazer isso depois de revacinar essas populações específicas. Rússia, Hungria e República Dominicana já começaram a dose adicional geral.
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Dilema ético
A medida desagrada a Organização Mundial da Saúde (OMS), que considera antiético aplicar uma dose extra em pessoas já totalmente vacinadas quando, em diversos países, como alguns da África Subsaariana e do Pacífico, a maior parte da população não recebeu nem a primeira vacina. “Eu entendo a preocupação de todos os governos em proteger seu povo da variante Delta, mas não podemos aceitar países que já usaram a maior parte do suprimento global de vacinas usando ainda mais”, destacou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.
Essa preocupação é compartilhada por alguns especialistas, que concordam com o reforço para populações vulneráveis, mas pedem cautela quando o assunto é oferecer a dose extra a todos. “Sou um veemente apoiador das vacinações em geral e, particularmente, da covid. No entanto, me preocupa quando se começa a oferecer a vacina para grupos que não têm muito a ganhar com elas, como os menores de 16 anos, e as pessoas que já tomaram duas doses”, diz David Elliman, consultor em pediatria do Hospital Great Ormond Street, em Londres. “Do ponto de vista ético, antes de lançarmos a vacina para as pessoas de menor risco, devemos garantir que as pessoas com maior risco em outras partes do mundo tenham a oportunidade de serem imunizadas. Isso está longe de ser o caso no momento”, diz.
O imunologista César Carranza destaca o dilema que envolve a tomada de decisão sobre a dose de reforço. “A posição da OMS se baseia em uma visão de saúde pública. Mas sabemos que, infelizmente, nem todos os países têm os mesmos recursos e as mesmas possibilidades, e todo mundo está preocupado com os rumos que vem tomando a pandemia, com seus impactos econômicos, em cada país. Então, acredito que as duas posições são corretas”, diz. Ele acredita que os países mais desenvolvidos deveriam, porém, ajudar nações mais pobres a vacinar suas populações, especialmente as mais vulneráveis. “Mais esforços deveriam ser feitos também em continuar investigações para que novas vacinas com ação muito melhor contra as variantes prevalentes sejam feitas.”
Novas frentes
Penny Ward, do Kings College de Londres, ressalta que as discussões sobre a dose de reforço “reiteram a necessidade urgente de opções adicionais para o controle da epidemia”. Ela cita o uso de anticorpos com atividade contra a cepa Delta para prevenir a transmissão do Sars-CoV-2 — recentemente, a AstraZeneca anunciou a eficácia da combinação de anticorpos para evitar a infecção pelo coronavírus, uma estratégia que poderia beneficiar tanto pessoas alérgicas a vacinas quanto reforçar a proteção em imunossuprimidos.
Para Juan Wisnivesky, da Divisão de Medicina Geral Interna do Sistema de Saúde Mount Sinai, nos EUA, as pessoas devem colaborar e, mesmo vacinadas, continuar com medidas de segurança, reduzindo os riscos de infecção e de transmissão do vírus. “Temos de manter os cuidados, o distanciamento social, o uso da máscara, realizar o teste na presença dos sintomas; essas são questões muito importantes.”
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Quatro perguntas /Raquel Stucchi - Infectologista, professora da Universidade de Campinas (Unicamp) e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia
Alguns estudos, como os apresentados pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA nas últimas semanas, mostram que a eficácia das vacinas pode cair para até 60%. Isso justifica uma dose de reforço antes que se complete um ano desde a imunização completa?
O coronavírus não é sazonal. Ele se mantém o ano todo, do inverno ao verão. A partir do momento em que nós identificamos que a resposta vacinal diminui, sim, é importante para o controle da pandemia que se faça a dose de reforço antes de se completar um ano, porque a proteção da vacina cai com seis, oito meses.
Para pessoas imunossuprimidas, pesquisas mostram que duas doses das vacinas não oferecem uma proteção adequada. Para elas e para idosos, cuja mortalidade por covid está em alta, a dose de reforço é mais urgente?
A dose adicional para idosos e imunossuprimidos é urgente e deveria ter antecedido, inclusive, a vacinação dos menores de 18 anos. Idosos e imunossuprimidos são os que terão, novamente, quadros graves, precisarão ir ao hospital, aumentarão a nossa ocupação de leitos hospitalares e, provavelmente, infelizmente, temos risco de aumentar a mortalidade também.
Considerando as atuais plataformas vacinais, futuramente, em vez de se pensar em uma dose adicional, seria possível alterar as vacinas de acordo com as variantes, como se faz no caso da vacina da gripe?
Devemos ter novas gerações de vacinas não só que se adaptem às novas variantes, mas que também possam nos dar um tempo de proteção maior do que as que temos hoje, porque, em todas elas, há uma diminuição de proteção em torno de seis e oito meses. Então, precisaremos de novas vacinas, com novas plataformas, com certeza.
A OMS insiste que não há evidências de que uma terceira dose seja necessária, considerando que boa parte do mundo, especialmente países da África, da Oceania e do sudeste asiático, não recebeu nem a primeira dose. Qual sua opinião a respeito?
A Organização Mundial da Saúde coloca que não se deveria começar uma terceira dose sem antes vacinar a maior parte da população do mundo. Acho que esse é o papel da OMS, de olhar e zelar pela população mundial. Entretanto, nós sabemos também que, se o objetivo da vacinação era diminuir formas graves, diminuir hospitalizações e morte, temos um contingente grande que precisa dessa dose adicional, e os estudos já mostraram que isso é necessário. Essa dose adicional não é para todos, mas, infelizmente, se faz necessária neste momento. Aqueles países que têm doses sobrando e vencendo deveriam direcioná-las para os países que não têm quantitativo para vacinar sua população. (PO)