O principal sistema de circulação do Oceano Atlântico e um importante regulador do clima mundial perdeu quase toda a estabilidade no século passado e pode ter chegado a um limite crítico, sem reversão. Um estudo publicado, ontem, na revista Nature Communications indicou que a Circulação de Revolvimento do Atlântico Norte (Amoc, sigla em inglês), da qual participa a corrente do Golfo, está à beira de um colapso devido ao aquecimento do planeta. Os autores alertam que, entre outros impactos, o fenômeno poderia “resfriar substancialmente a Europa”, além de ter graves consequências sobre os sistemas de monções tropicais.
A Amoc consiste na movimentação das águas quentes das zonas tropicais do Atlântico para o Norte, levadas pela corrente do Golfo, aquecendo a Europa ocidental durante a sua passagem. Quando chegam à porção norte do oceano, as águas esfriam, tornam-se mais densas e pesadas e afundam sob os volumes mais quentes antes de retornar para o Sul, onde o ciclo volta a acontecer. “Trata-se de um dos principais sistemas de circulação do planeta”, diz Niklas Boers, um dos autores do estudo e pesquisador do Instituto Postdam para Pesquisa de Impacto Climático, na Alemanha.
Em 2018, duas pesquisas também divulgadas pelo grupo Nature alertaram que o sistema de correntes do Atlântico estava enfraquecido devido ao derretimento de gelo marinho, das geleiras e das plataformas de gelo, que liberam água doce — menos densa que a salgada — no Atlântico Norte. Segundo David Thornalley, pesquisador da Universidade College London, na Inglaterra, e coautor de um dos estudos, “a água doce debilita a Amoc porque impede que as águas estejam bastante densas para afundar”.
Mais recentemente, há quatro meses, uma pesquisa publicada na Nature Geosciences e baseada em simulações de computador com dados do passado da Terra, os chamados registros proxy paleoclimáticos, demonstrou que a corrente se encontra em seu estado mais fraco em 1,6 mil anos. Porém Boers nota que estava em aberto a questão se o enfraquecimento associa-se a uma alteração no estado da circulação ou a uma perda real de estabilidade dinâmica.
“É uma diferença crucial”, diz Niklas Boers, “porque a perda de estabilidade dinâmica implicaria que a Amoc se aproximou de seu limite crítico, além do qual poderia ocorrer uma transição substancial e, na prática, provavelmente irreversível para o modo fraco da corrente”.
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Embora a complexidade do sistema e as incertezas sobre os níveis de aquecimento global futuros dificultem saber quando isso acontecerá — pode ser questão de décadas ou séculos —, Boers destaca que o impacto do fenômeno seria tão catastrófico que é preciso evitá-lo a todo custo. “Precisamos urgentemente reconciliar nossos modelos com as evidências observacionais apresentadas para avaliar quão longe ou quão perto de seu limite crítico a Amoc realmente está”, afirma.
Impressões digitais
Embora não existam dados observacionais de longo prazo sobre a força da Amoc, o sistema de circulação deixa as chamadas impressões digitais na temperatura da superfície do mar e nos padrões de salinidade do Oceano Atlântico. “Uma análise detalhada dessas impressões digitais em oito índices independentes, com registros de até 150 anos atrás, sugere, agora, que o enfraquecimento da Amoc durante o século passado provavelmente está associado a uma perda de estabilidade”, diz Boers. “Os resultados apoiam a avaliação de que o declínio da Amoc não é apenas uma flutuação ou uma resposta linear ao aumento das temperaturas, mas provavelmente significa a aproximação de um limite crítico além do qual o sistema de circulação pode entrar em colapso.”
“A Amoc tem uma influência profunda no clima global. Portanto, o enfraquecimento contínuo da circulação é uma nova evidência crítica para a interpretação das projeções futuras do clima regional e global”, diz Andrew Meijers, pesquisador de oceanos polares do projeto climático British Antarctic Survey, na Inglaterra. “Além disso, ela é frequentemente modelada como tendo um ponto de inflexão abaixo de alguma força de circulação, um ponto no qual a circulação relativamente estável torna-se instável ou mesmo colapsa. Nós corremos o risco de encontrar esse ponto, o que teria impactos profundos e, provavelmente, irreversíveis no clima”, completa Meijers, que não participou do estudo divulgado ontem.
Vários fatores estão associados ao fenômeno, e todos eles têm relação com o aquecimento global, como o derretimento de geleiras e o depósito de água doce no Oceano. “Eu não esperava que as quantidades excessivas de água doce adicionadas no decorrer do século passado já produzissem tal resposta na circulação virada”, diz Boers, que afirma ter ficado surpreso e assustado com o resultado do estudo. Segundo o pesquisador, embora não se saiba quais os níveis de emissão de CO2 poderiam desencadear o colapso do sistema, “a única coisa a fazer é manter as emissões o mais baixo possível”.
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Chuvas extremas
A chuva recorde recente no nordeste dos Estados Unidos são parte de uma tendência mais ampla. Do Maine à Virgínia, essa região viu um aumento abrupto na precipitação extrema — chuva forte e neve resultando em cerca de 2mm de água por dia dependendo da localização desde 1996, o que coincidiu com o aquecimento das temperaturas da superfície do mar no Atlântico Norte.
A precipitação extrema do nordeste é normalmente causada por ciclones tropicais, tempestades ao longo das frentes e ciclones extratropicais. Porém um estudo publicado na revista Weather and Climate Extremes descobriu que o aumento do excesso de chuva após 1996 foi causado por gases de efeito estufa provenientes da atividade humana e da variabilidade da temperatura da superfície do Oceano Atlântico Norte.
“Nosso trabalho anterior mostrou que a precipitação extrema do nordeste aumentou dramaticamente nos últimos 25 anos, mas esse estudo está entre os primeiros a demonstrar que esse aumento é parcialmente devido à mudança climática antropogênica”, afirma o autor principal, Huanping Huang, pesquisador da Divisão de Ciências Climáticas e Ecossistêmicas do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley.
O estudo baseia-se em trabalhos anteriores de Huang e dos coautores, que descobriram que o nordeste norte-americano experimentou um aumento de 53% nas precipitações extremas desde 1996 e que o principal fator para o aumento são as chuvas intensas de ciclones tropicais. A equipe associou os fenômenos a uma atmosfera mais quente, que aumenta a quantidade de água capaz de ser contida pelo, e a um Oceano Atlântico menos frio, que cria furacões mais fortes e frequentes. “Nossos resultados demonstram que a variabilidade multidecadal nas temperaturas da superfície do Oceano Atlântico, um importante fator de aquecimento no Atlântico, junto com gases de efeito estufa antropogênicos e aerossóis, também contribuíram para o aumento da precipitação extrema do Nordeste após 1996”, acrescenta Huang.