A louca das sacolas, a cheiradora de álcool em gel, a viciada em desinfetante. Esses são alguns dos apelidos que a bancária Eloísa (nome fictício a pedido da entrevistada), 32 anos, arrumou para ela mesma na pandemia de covid-19. Não que visse graça na situação — ela recorria às alcunhas depreciativas quase como um pedido de desculpa aos outros por atitudes que, hoje, julga exageradas. “Fazia, e ainda faço, a maior parte das compras por delivery. Pedia que fossem colocadas atrás da porta. Calçava luvas e disparava álcool em cada uma. Mesmo assim, a impressão era sempre de que o cuidado era pouco, que eu iria pegar o vírus e passar para minha família por ter tocado ou encostado numa superfície contaminada”, relata.
O excesso de medo levou Eloísa a desenvolver episódios de pânico. “Nunca tinha passado por isso, mas, às vezes, do nada, parecia que não estava mais respirando e que meu coração iria parar de bater de tão acelerado.” A psicoterapia tem ajudado a bancária a lidar com o medo extremo, mas ela confessa que abandonar os hábitos não é fácil. “Eu já não jogo álcool nas sacolas nem uso luvas, mas lavo as mãos mesmo quando não toquei em nada.”
Embora considere seu caso extremo, Eloísa está longe de ser a única pessoa que, alertada por estudos sobre a sobrevivência do vírus em superfícies, passou a ter medo de segurar uma sacola sem luvas ou sem uma boa dose de álcool. De repente, tapetes sanitizantes — um item de eficácia duvidosa, segundo especialistas — viraram praticamente obrigatórios na frente de casas e comércio, e a imagem de profissionais vestidos de “astronauta” pulverizando ambientes tornou-se comum. Mas quase um ano e meio depois de a Organização Mundial da Saúde (OMS) ter declarado a pandemia, hoje se sabe que, embora o contágio por uma superfície seja possível, ele é pouco provável.
Na semana passada, mais um estudo engrossou o corpo de evidências de que o genoma do vírus pode até estar presente em superfícies. Porém, isso não é o suficiente para propagá-lo da forma como se imaginava. Na pesquisa, publicada na revista Plos One, cientistas do campus Davis da Universidade da Califórnia coletaram, com swabs, amostras de vírus na UTI do hospital universitário, onde pacientes de covid-19 são tratados. As coletas foram feitas em abril e agosto do ano passado, em superfícies e nos filtros de ar-condicionado.
O material dos esfregaços passou por sequenciamento genético, que detectou o vírus até mesmo em amostras com resultados negativos pelos testes de PCR, comumente usados. Ao mesmo tempo, os testes confirmaram que, mesmo quando o RNA viral estava quase intacto, ele não era infeccioso. “Isso apoia a hipótese de que superfícies contaminadas podem não ser uma forma importante de disseminação da covid-19”, diz David Coll, principal autor do estudo.
Sobrevivência variada
O primeiro trabalho sobre a sobrevivência do vírus em superfícies publicado em uma revista científica de impacto foi divulgado no fim de março do ano passado, na The New England Journal of Medicine. Trata-se de uma correspondência — artigo breve que discute um assunto importante, mas sem dados suficientes para ser considerado uma pesquisa. O trabalho, financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, descreveu 10 condições experimentais com dois vírus (o Sars-CoV e o Sars-CoV-2). Os pesquisadores avaliaram a estabilidade dos patógenos em aerossóis e vários materiais e estimaram o tempo de permanência com base em um modelo de inferência estatística.
Os resultados mostraram que o vírus se mantinha nas superfícies por tempos diferenciados — no plástico e no aço inoxidável, o micro-organismo continuou viável por até 72 horas, relataram os pesquisadores. Porém, pouco depois, sem obter a mesma repercussão, um microbiólogo da Escola Médica de Rutgers, em Nova Jérsei, publicou uma correspondência na revista científica britânica The Lancet questionando o artigo dos colegas norte-americanos.
No texto, intitulado Risco exagerado de transmissão do Sars-CoV-2 por superfícies, Emanuel Goldman alertou que o experimento de laboratório realizado por eles tinha pouca semelhança com o que ocorria em cenários do mundo real. “Na minha opinião, a chance de transmissão através de superfícies inanimadas é muito pequena, e apenas nos casos em que uma pessoa infectada tosse ou espirra na superfície e outra pessoa toca essa superfície logo após a tosse ou o espirro (dentro de uma ou duas horas)”, alega.
O que acontece, segundo Goldamn, é que, no estudo dos Institutos Nacionais de Saúde e em outros que se seguiram com a mesma metodologia, os pesquisadores utilizaram cargas virais muito altas nas amostras, no geral, três vezes e meia maior do que a detectada em um indivíduo cuja carga viral é considerada alta. “Não discordo de errar por excesso de cautela, mas isso pode levar a extremos não justificados pelos dados científicos. Embora a desinfecção periódica de superfícies e o uso de luvas sejam precauções razoáveis, especialmente em hospitais, acredito que os fômites (superfícies e objetos) que não estiveram em contato com um portador infectado por muitas horas não representam um risco mensurável de transmissão em ambientes não hospitalares”, destaca.
Trabalhos que se seguiram ao de Goldmamn acabaram confirmando a suspeita do microbiólogo de que a transmissão por meio de superfícies e objetos é bem mais reduzida do que o imaginado. Em maio, uma equipe de infectologistas italianos da Universidade de Pavia publicou um artigo de correspondência na The Lancet no qual descreveu dois testes realizados por eles na enfermaria de doenças infecciosas de um hospital de referência no norte da Itália, assim como nas alas de emergência e internação.
Embora o vírus tenha sido detectado em objetos e superfícies, ele não se mostrou viável, ou seja, era incapaz de infectar uma pessoa. “Nossos resultados sugerem que a contaminação ambiental que leva à transmissão do Sars-CoV-2 é improvável de ocorrer em condições da vida real desde que os procedimentos de limpeza e precauções padrão sejam aplicados”, escreveram.