Um experimento inusitado pode ajudar na criação de uma vacina contra a malária. Um grupo de 56 pessoas dos EUA aceitou ser infectado pelo parasita causador da doença para, em condições de controle científico, testar a eficiência de uma fórmula protetiva. O imunizante foi administrado em parceria com medicamentos antimaláricos e induziu proteção de até 100%, segundo artigo divulgado na revista Nature. Uma segunda fase dos testes está sendo conduzida no Mali, país africano em que a enfermidade é endêmica. Os criadores da terapia acreditam que, caso os resultados se repitam, ela poderá contribuir para o combate à doença em todo o mundo.
Os voluntários receberam a vacina Sanaria, chamada também de PfSPZ, que é feita de esporozoítos atenuados (silenciados em laboratório). Essas moléculas são espécies de esporos que são transmitidos ao organismo humano por meio da picada de mosquitos infectados pelo Plasmodium falciparum, o agente infeccioso da enfermidade. Com o imunizante, o grupo recebeu pirimetamina ou cloroquina, remédios usados para tratar a malária. A combinação de abordagens é chamada quimioprofilaxia
Em seguida, sob condições cuidadosamente controladas, os voluntários foram expostos a uma cepa do parasita de origem africana, a mesma utilizada na produção da vacina (homóloga), ou a uma variante do parasita de origem brasileira (heteróloga), chamada 7G8e. A exposição em ambos os casos se deu por meio do sangue — as variantes foram inoculadas nos participantes de forma intravenosa.
A equipe observou que doses maiores da vacina foram associadas a níveis mais altos de proteção. No caso do parasita homólogo, a taxa chegou a 87,5%. Já no caso heterólogo, em participantes que o receberam com a cloroquina, a abordagem gerou proteção de 100% e durou três meses.
Segundo os cientistas, a proteção longa e para cepas heterólogas é um ganho muito importante, já que uma vacina eficaz deve proteger contra uma ampla gama de variantes do Plasmodium falciparum. “Para acabar com a malária, precisamos de uma vacina que consiga tratar esse parasita em suas diversas formas e necessitamos também de um efeito durável da imunidade, que é algo que começamos a ver nessa análise”, justificam os autores do artigo, liderados por Patrick E. Duffy, pesquisador do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (Niaid), nos Estados Unidos.
O texto lembra que, até recentemente, os desenvolvedores de vacinas contra a malária buscavam proteção que durasse de duas a três semanas, com a imunidade diminuindo depois desse período. “A descoberta de 100% de proteção contra parasitas de variantes distintas em três meses é sem precedentes”, declara, em comunicado, Martin Grobusch, chefe do Centro de Medicina Tropical da Universidade de Amsterdã, ao comentar o estudo.
Saiba Mais
Segurança
O infectologista Leandro Machado explica que a decisão de combinar antimaláricos e vacina busca mais segurança na abordagem. “Por mais que os esporozoítos sejam silenciados, você precisa garantir que eles não gerem uma infecção. Com os remédios, você controla a reação do corpo, para que ela seja apenas de defesa”, detalha. “Essa é uma estratégia antiga, foi testada por um casal de brasileiros há cerca de 50 anos. Eles também silenciaram essas moléculas em laboratório e infectaram algumas pessoas, mas isso não gerou ganhos protetivos na época. Hoje, já temos essas novas tentativas com muito mais ferramentas tecnológicas disponíveis e o uso dos remédios. Por isso, temos dados positivos”, avalia.
O especialista lembra que a decisão de infectar os voluntários segue protocolos rígidos. “Todas essas pesquisas passam por um comitê de ética, que garante a segurança. O ambiente em que o estudo é feito é controlado, o número de avaliados é pequeno. São detalhes que permitem aos cientistas lidarem com o parasita da melhor forma possível. Muitos pesquisadores fazem isso, e não temos registrado problemas”, relata.
Segundo Leandro Machado, são necessários mais estudos para avaliar a eficácia da vacina, mas ele sinaliza algumas possibilidades de uso. “Com esse período de eficácia, que foi de três meses, acredito que seja uma alternativa preventiva para pessoas que vão viajar a trabalho, em alguma região que sofre com a malária, como cogitam os autores da pesquisa. Até termos algo totalmente efetivo e duradouro ainda demora mais”, opina.
Os criadores do imunizante planejam avaliá-lo em grupos maiores. “Essa abordagem de prevenção precisa avançar, ela tem que ser encarada como uma ferramenta potencial para proteger pessoas que viajam para a África. No futuro, é muito provável que contribua para um combate à malária mais amplo e ainda mais durável”, afirmam.