Desde o início da pandemia, pessoas infectadas pelo Sars-CoV-2 apresentam distúrbios neurológicos e psiquiátricos após se recuperarem da covid-19, como problemas de memória, dores de cabeça, casos de encefalite e até de psicose. Mas especialistas ainda não sabem explicar como essas complicações são desencadeadas. Em uma pesquisa laboratorial, cientistas da Holanda descobriram que o novo coronavírus consegue infectar algumas células cerebrais, desencadeando respostas imunológicas locais. Há a possibilidade de esse fenômeno ser a causa dos danos neurais e comportamentais observados em pacientes, mas a equipe reconhece que há muita investigação pela frente.
“Cada vez mais estudos científicos indicam que o Sars-CoV-2 pode entrar no cérebro por meio do nervo olfatório, no entanto, o que acontece depois que o patógeno da covid-19 invade o cérebro ainda é pouco compreendido”, detalharam os autores do estudo, publicado na última edição da revista especializada mSphere. Para responder essas perguntas, a equipe observou a ação do agente infeccioso em um grupo de células-tronco pluripotentes induzidas (iPS), que são desenvolvidas em laboratório. “Também examinamos um número limitado de células cerebrais”, relatou, por meio de comunicado, Femke de Vrij, pesquisadora do Departamento de Psiquiatria do Hospital Erasmus e uma das autoras do estudo.
Nos experimentos em laboratório, os cientistas observaram que o novo coronavírus pode infectar os neurônios, mas a sua propagação para rapidamente e se limita a algumas células cerebrais. Ainda assim, essa infecção mínima causa uma reação das citocinas, que são uma espécie de mensageiros entre as células do sistema imunológico e as cerebrais. E isso pode contribuir para uma inflamação local. “O fato de que o Sars-CoV-2 pode, eventualmente, entrar no cérebro através do nervo olfativo e infectar células localmente, o que, por sua vez, causa uma resposta inflamatória, pode certamente contribuir para distúrbios neurológicos”, explicou Debby van Riel, também autora do estudo e virologista da Hospital Erasmus.
Segundo a equipe, o estudo precisa de mais aprofundamento, e a indicação deles é de que as próximas pesquisas sobre danos neurológicos e psiquiátricos da covid-19 se concentrem no papel do sistema de defesa humano. “O sistema imunológico provavelmente desempenha um papel ainda mais importante, além do que o nosso estudo indica. Mais pesquisas serão necessárias para desvendar essa questão. Com novas investigações, os efeitos de curto e longo prazo de uma infecção viral nas estruturas cerebrais vão ser melhor compreendidos”, ressaltou van Riel.
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Ação disseminada
Segundo Luciano Lourenço, clínico geral e chefe da Emergência do Hospital Santa Lúcia, de Brasília, os dados da pesquisa holandesa entram em concordância com resultados de outros estudos. “Sabemos que esse patógeno tem uma ação efetiva em diversos órgãos. Antes, achávamos que ele atingia mais o pulmão, pelos danos respiratórios frequentes. Agora, sabemos que ele invade os rins, o intestino e o cérebro”, justificou. “Apesar de o cérebro ter uma rede de proteção eficiente, chamada barreira hematoencefálica, o vírus supera esse obstáculo pela sua eficiência em se replicar.”
Um estudo publicado, em abril, na revista The Lancet Psychiatry, mostrou que uma em cada três pessoas que superaram a covid-19 apresentou um diagnóstico de distúrbio neurológico ou psiquiátrico ao longo dos seis meses posteriores à infecção. A análise de dados de 236.379 indivíduos com covid-19 mostrou que os problemas comportamentais mais frequentes nos seis meses posteriores à alta foram a ansiedade (17%) e alterações de humor (14%). Em relação aos danos neurológicos, observou-se, principalmente, hemorragias cerebrais (0,6%), acidentes vasculares cerebrais (AVC) e demência (0,7%).
No último domingo, uma pesquisa italiana apresentada no 7º Congresso da Academia Europeia de Neurologia revelou que, até dois meses depois de terem tido alta, infectados pelo Sars-CoV-2 podem sofrer com problemas cognitivos e comportamentais. No estudo, 49 pacientes, atendidos em um hospital na cidade de Milão, foram acompanhados por oitos semanas depois de receberem alta. Nesse período, metade apresentou problemas neurais, como perda de memória e dificuldade de processar informações. “São necessários estudos mais abrangentes e acompanhamento de longo prazo, mas esse estudo sugere que a covid-19 está associada a problemas cognitivos e psicopatológicos significativos”, declarou, em comunicado, Elisa Canu, pesquisadora do Hospital San Raffaele de Milão e principal autora estudo.
Luciano Lourenço descreve outras complicações percebidas na clínica. “Observamos pacientes que tiveram covid-19 com problemas como ansiedade, depressão e também a parestesia, quando a pessoa perde a sensibilidade de determinadas partes do corpo, como a região inferior da coxa. Tudo isso está relacionado ao cérebro”, detalhou. “Chamamos esses danos neurais e psicológicos, além de outros efeitos desencadeados pelo vírus, de síndrome pós-covid. A área médica tem se preocupado cada vez mais com isso, buscando formas de tratá-la melhor e de evitá-la quando possível. Esse tipo de compreensão (das pesquisas) pode contribuir nessa tarefa.”
»OMS anuncia plataforma de dados
A Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou o lançamento de uma plataforma comum na internet para combater o novo coronavírus. A ferramenta, desenvolvida em parceria com a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), foi projetada para que os países-membros das três instituições possam ter acesso a diferentes tipos de assistência, informação, tecnologia e assessoramento sobre a pandemia. A iniciativa foi aprovada pelos diretores de cada uma das agências, em uma reunião realizada no último dia 15.
Risco aumentado
Os cientistas também cruzaram dados de mais de 100 mil pacientes que tiveram gripe ou outros problemas respiratórios com os dos infectados pelo Sars-CoV-2. Constataram que, em geral, o risco de apresentar um problema neurológico ou psiquiátrico é 44% maior em pacientes contaminados pelo novo coronavírus. “Infelizmente, muitos problemas identificados no estudo têm uma tendência a se tornarem crônicos ou recorrentes. Então, podemos antecipar que o impacto da covid-19 poderia perdurar durante muitos anos”, alertou, em comunicado, Jonathan Rogers, pesquisador da Universidade de Londres e um dos autores do estudo.