A síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS) é um dos problemas de saúde mais comuns no mundo, e, na maioria das vezes, quem sofre com ela não busca tratamento. Esse cenário deve mudar, avisam especialistas da área. Resultados de pesquisas recentes ajudam a fortalecer o alerta. Há sinais, por exemplo, de que as terapias podem reverter danos — o problema crônico está ligado a alterações hormonais que desencadeiam enfermidades cardiovasculares e metabólicas, como diabetes e obesidade — e proteger a saúde neural, como menor risco de demência.
Durante o sono, uma pessoa com SAOS sofre paradas respiratórias provocadas pelo estreitamento das paredes da faringe, o que atrapalha a passagem do ar. Essas alterações interrompem o sono e desregulam o funcionamento dos ciclos circadianos, elementos essenciais para o equilíbrio do corpo. “São eles que regulam todos os nossos processos biológicos ao liberar substâncias importantes para a saúde de acordo com sinais que recebem dos ambientes externo, como luz e temperatura, e interno, a alimentação, por exemplo. Esse desequilíbrio é a base para o surgimento de diferentes enfermidades”, explica, em comunicado, Ana Rita Álvaro, pesquisadora do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, em Portugal.
Para entender o nível de prejuízos gerados pela SAOS, Álvaro e sua equipe acompanharam um grupo de 34 pessoas que foram avaliadas antes e depois de receberem a terapia de pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP, em inglês). Ao longo de dois anos e quatro meses, os cientistas coletaram periodicamente (duas vezes por semana) amostras do sangue dos analisados em quatro momentos diferentes do dia. O material foi avaliado com a ajuda de métodos apurados de bioinformática e de inteligência artificial. “Por meio das células presentes no sangue, conseguimos quantificar os níveis de hormônios liberados e enxergar melhor o funcionamento dos relógios biológicos”, conta Ana Rita Álvaro.
A equipe também percebeu que, durante a SAOS, havia alterações consideráveis nos níveis hormonais dos voluntários. “Os desequilíbrios foram constantes, como esperávamos, e geraram alterações que são preocupantes para a homeostase (equilíbrio) do organismo”, enfatiza a pesquisadora. Após o tratamento com CPAP, as alterações foram revertidas quase que completamente. “Esse estudo é um alerta para a importância do tratamento da apneia do sono, mostra que ele deve ser adotado por todos que sofrem com essa síndrome, o que não acontece. Defendemos também que o acompanhamento das alterações dos relógios biológicos pode servir como instrumento de análise da eficácia das terapias, ao mostrar se o paciente apresenta melhoras na retomada da homeostase do corpo”, completa Cláudia Cavadas, coautora e pesquisadora da universidade portuguesa.
Para Jefferson Pitelli Fonseca, médico otorrinolaringologista do Hospital Anchieta, em Brasília, o estudo mostra dados que reforçam o quanto a SAOS pode ser prejudicial, e a necessidade do tratamento. “Sempre comentamos essa questão, os pacientes querem acabar só com o ronco porque ele é o que mais incomoda. Elas chegam ao consultório apenas com essa queixa, esquecem dos outros danos que podem sofrer”, relata. “Frisamos, nas consultas, que o mais importante é retomar o sono reparador, é ele que regula a produção de elementos importantes para o funcionamento do organismo e nos protege de outras enfermidades. Como vemos nesse estudo, conseguimos conquistar esses ganhos com a terapia.”
Alzheimer
Além da reversão dos danos gerados aos relógios biológicos durante as noites maldormidas, o tratamento da SAOS pode reduzir os riscos de desenvolvimento de demências. A descoberta foi feita por pesquisadores americanos ao avaliarem dados de 50 mil beneficiários de um plano de saúde dos Estados Unidos com ao menos 65 anos e o diagnóstico da apneia.
Por meio da análise dos prontuários médicos, os pesquisadores observaram que as pessoas submetidas à CPAP tinham menos probabilidade de receber um novo diagnóstico de demência ou comprometimento cognitivo leve nos anos seguintes ao começo do tratamento, em comparação às que não tratavam a apneia. “Encontramos uma associação significativa entre essa prática terapêutica e o menor risco de Alzheimer e de outros tipos de demência ao longo de três anos, um intervalo de tempo bastante expressivo”, afirma Galit Levi Dunietz, professor-assistente de neurologia e epidemiologista do sono da Universidade de Michigan, nos EUA.
Os pesquisadores acreditam que as descobertas enfatizam o impacto do sono na função cognitiva e reforçam a necessidade de dormir bem. “Se existe uma via causal entre o tratamento de SAOS e o risco de demência, como nossos resultados sugerem, o diagnóstico e o tratamento eficaz dessa síndrome podem desempenhar um papel fundamental na saúde cognitiva de adultos mais velhos”, diz Tiffany J. Braley, professora de neurologia da instituição americana e também autora do estudo.
Padrão ouro
Trata-se de um pequeno aparelho compressor de ar silencioso, considerado o padrão ouro para o tratamento da apneia do sono. Esse dispositivo foi inventado pelo médico australiano Colin E. Sullivan, em 1981, e evita o fechamento da passagem do ar pelos pulmões. Melhora a qualidade do sono e também o surgimento de sintomas como dores de cabeça, cansaço, dificuldade de concentração e sonolência.
Para saber mais
Avanços no diagnóstico
A fim de ajudar no diagnóstico da síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS), estudantes de ciência da computação desenvolveram um aplicativo que ajuda a identificar os sinais da doença em casa. Chamada de ApneaTracker, a nova ferramenta monitora o ronco do usuário, por meio de um microfone, e a posição de dormir, por meio dos sensores de um relógio inteligente. Os cientistas da Finlândia pretendem disponibilizar o aplicativo em pouco tempo, mas destacam que ele serve apenas como um auxiliar no combate à apneia. Caso o aparelho indique a SAOS, é necessária a confirmação de um médico.
Já para ajudar a tratar a doença, pesquisadores belgas desenvolveram um dispositivo eletrônico semelhante a uma dentadura. Ele ajuda a melhorar a respiração dos pacientes e também consegue monitorar movimentos mandibulares. Por meio da tecnologia, os cientistas acreditam que a doença pode ser tratada com mais eficácia e em menos tempo, considerando os aparelhos atuais. A equipe vai testar a tecnologia fora do laboratório, mas testes iniciais se mostraram promissores.
“O mais importante é retomar o sono reparador, é ele que regula a produção de elementos importantes para o funcionamento do organismo e nos protege de outras enfermidades (…) Conseguimos conquistar esses ganhos com a terapia”
Jefferson Pitelli Fonseca, médico otorrinolaringologista do Hospital Anchieta, em Brasília
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Impacto em reabilitações
Ganhos neurais desencadeados pelo tratamento da síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS) foram detectados em outra pesquisa estadunidense. Os cientistas acompanharam, durante um ano, 252 indivíduos que tiveram derrames e sofriam com a síndrome respiratória. Metade deles era tratada com SAOS. A outra, não. Todos os analisados submetidos à terapia para a apneia do sono conseguiram recuperar a fala e movimentos perdidos em função do derrame em menos tempo. “Acreditamos que esses dados, mesmo que preliminares, sugerem que quanto mais cedo você tratar a apneia obstrutiva do sono em pacientes com danos neurológicos, melhor será a recuperação”, declara Dawn Bravata, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Regenstrief Institute e líder do estudo, publicado na revista Journal of the American Heart Association.
Marcelo Lobo, neurologista do Hospital Santa Lúcia e membro titular da Sociedade Brasileira de Neurologia (SBN), explica que a relação do sono com a neurologia está ligada a uma faxina natural do cérebro. “No sono, nossas células fazem uma espécie de limpeza geral, e isso refina o funcionamento cerebral. A pessoa que sofre com a apneia não consegue chegar ao nível de sono mais profundo, que é onde ocorre essa limpeza. Com isso, as funções neurológicas e de memória ficam prejudicadas pela presença de produtos tóxicos”, detalha.
O médico lembra ainda que a apneia está associada à arritmia cardíaca, que aumenta os riscos de ocorrência de um acidente vascular cerebral. “Ao tratar essa enfermidade, evitamos que danos ainda mais severos aconteçam nas funções neurais”, frisa. Marcelo Lobo acredita que, com a ajuda da tecnologia (Leia Para saber mais), a resistência quanto ao tratamento deva diminuir. “Ainda temos dificuldades porque muitos pacientes não gostam de usar o CPAP, por ser um aparelho grande, mas opções menores estão surgindo. Tudo isso pode ajudar a aumentar a adesão.” (VS)