SAÚDE

Cientistas criam embrião com células humanas e de macaco

Modelo com DNA de dois parentes próximos é criado por pesquisadores da Espanha e da China e surpreende a comunidade científica. Equipe alega ter agido dentro da ética. Há dúvidas quanto à qualidade do experimento e ao status moral da polêmica quimera

Na mitologia grega, Quimera é uma besta híbrida, com três cabeças: de leão, de cabra e de serpente. Desde a década de 1970, cientistas tentam criar, em laboratório, embriões que, assim como a fera assustadora, são formados por mais de uma espécie. Não à toa, são chamados embriões quiméricos. Polêmicos, eles têm potencial para uma variedade de pesquisas, desde o estudo das primeiras etapas do desenvolvimento até a busca pela cura de doenças degenerativas. Agora, cientistas espanhóis e chineses anunciaram sucesso em um modelo que mistura células-tronco humanas com as de macaco.

Em um artigo publicado na revista Cell, a equipe, chefiada por Juan Carlos Izpisua Belmonte, professor do Laboratório de Expressão Gênica no Instituto Salk de Ciências Biológicas (Califórnia), descreve a evolução de um estudo de 2017 que resultou em embriões de porcos com células humanas ativas. Porém, a pesquisa com os suínos não foi satisfatória, provavelmente pelo longo tempo que separa ancestrais de homens e de porcos na escala evolutiva — 90 milhões de anos. Por isso, o espanhol Izpisua Belmonte decidiu criar quimeras formadas com DNA de dois parentes próximos.

“Como não somos capazes de conduzir certos tipos de experimentos em humanos, é essencial que tenhamos melhores modelos para estudar e compreender com mais precisão a biologia e as doenças humanas”, justificou Izpisua Belmonte, em nota. “Um objetivo importante da biologia experimental é o desenvolvimento de modelos que permitam o estudo de doenças humanas em condições in vivo.” Segundo o cientista, com a escassez de órgãos para transplantes, os embriões quiméricos podem, no futuro, dar origem a pulmões, corações, rins etc. Izpisua Belmonte diz que consultou diversas fontes jurídicas para se certificar dos aspectos éticos da pesquisa.

Os estudos foram conduzidos na Universidade Kunming de Ciência e Tecnologia de Yunnan, na China. No ano passado, o geneticista Weizhi Ji desenvolveu a tecnologia necessária para que os embriões de macaco continuassem vivos e crescessem fora do corpo por um período longo.

Seis dias depois que os embriões foram criados, cada um deles recebeu a injeção de 25 células-tronco humanas, conhecidas como pluripotentes estendidas. Elas têm o potencial de contribuir para a formação de tecidos embrionários e extraembrionários. Vinte e quatro horas depois, as células humanas foram detectadas em 132 embriões. A sobrevivência começou a declinar e, no 19º dia, apenas três quimeras estavam vivas. Contudo Izpisua Belmonte destaca que o percentual das células humanas nos embriões continuou alto — 7% — durante todo o período.

“Historicamente, a geração de quimeras humano-animal sofreu de baixa eficiência e integração das células humanas na espécie hospedeira”, diz Izpisua Belmonte. “A geração de uma quimera entre primatas humanos e não humanos, uma espécie mais intimamente relacionada aos humanos ao longo da linha do tempo evolucionária do que todas as utilizadas anteriormente, nos permitirá obter um melhor conhecimento sobre se existem barreiras impostas evolutivamente para a geração de quimeras e, se há, quais são os meios pelos quais podemos superá-los.”

“Extremamente pobres”

“Essa é uma área complicada em que, como no caso dos bebês (que passaram por edição genética com a ferramenta) CRISPR, a sociedade deve pensar e discutir antes de fazer experimentos”, diz o também espanhol Alfonso Martinez Arias, pesquisador do Departamento de Genética da Universidade de Cambridge, que classifica o estudo da Cell como “de baixa qualidade”.

Segundo Arias, no artigo, as imagens dos embriões são “extremamente pobres” para os padrões tecnológicos atuais. “É impossível ver o que eles dizem que está lá. O manuscrito tem um total de nove figuras e apenas três delas contêm embriões; as imagens são muito pobres e não é fácil discernir os diferentes tipos de células. Mais importante ainda, não há um único exemplo claro de uma quimera do dia 19 que possa apoiar os dados de que três embriões sobreviveram até agora. Aquele que eles mostram representando uma quimera com diferentes tipos de células (veja foto na infografia) corresponde a um embrião do dia 13. Em todos os casos, os espécimes parecem muito doentes. Eu desafio as pessoas a encontrarem qualquer coisa no manuscrito que se pareça com o que está desenhado no resumo gráfico”, critica.

Capacidade mental

Para Julian Savulescu, do Centro de Ética e Humanidades da Universidade de Oxford, a pesquisa “abre a caixa de Pandora para quimeras humano-não-humanas”. Ele diz que, embora os embriões tenham sido destruídos no 20º dia, é uma questão de tempo até que cientistas consigam desenvolver quimeras bem-sucedidas para, por exemplo, criar órgãos humanos. “Esse é um dos objetivos de longo prazo dessa pesquisa. A principal questão ética é: qual é o status moral dessas novas criaturas? Antes de qualquer experimento ser realizado em quimeras nascidas vivas, ou de seus órgãos extraídos, é essencial que suas capacidades mentais e vidas sejam devidamente avaliadas.”

Segundo Savulescu, “o que parece um animal não humano pode estar mentalmente próximo de um humano. Precisaremos de novas maneiras de entender os animais, suas vidas mentais e relacionamentos antes de usá-los para o benefício humano”. Na mitologia grega, a Quimera foi criada como pet do rei de Cária. Cansada, fugiu para uma montanha. Levada de volta à condição de animal de estimação, se revoltou e incendiou o reino.

 

 

 

Chris Keeney/Salk Institute - "Como não somos capazes de conduzir certos tipos de experimentos em humanos, é essencial que tenhamos melhores modelos para estudar e compreender com mais precisão a biologia e as doenças humanas" Juan Carlos Izpisua Belmonte, professor do Instituto Salk de Ciências Biológicas e líder do estudo
Universidade de Oxford/Divulgação - "Antes de qualquer experimento ser realizado em quimeras nascidas vivas, ou de seus órgãos extraídos, é essencial que suas capacidades mentais e vidas sejam devidamente avaliadas" Julian Savulescu, do Centro de Ética e Humanidades da Universidade de Oxford