Nos últimos dias, boa parte do mundo desviou sua atenção para a Índia, que desponta como novo epicentro global da pandemia da covid-19, com cenas trágicas de cremações em estacionamentos e doentes morrendo na porta de hospitais por falta de oxigênio.
Enquanto os holofotes estrangeiros saem do Brasil, hospitais em alguns Estados celebram quedas nas internações em UTIs. É o caso de São Paulo, que na quarta-feira (28/04) apontou baixa de 26,9% nas internações de pessoas com o novo coronavírus em um mês.
Para muitos, os dois movimentos trazem impressão de suposto controle da doença no Brasil, mesmo com o país registrando 3.019 mortes só nas últimas 24 horas, com um total de 398.343 óbitos desde o início da pandemia.
Com uma população seis vezes maior que a brasileira, a mesma Índia que agora ocupa o lugar do Brasil na imprensa internacional teve 3.645 mortes no mesmo período, com um total de 204.832 óbitos.
Nos dois países, segundo especialistas, a subnotificação da doença mascara o real alcance da pandemia.
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A percepção de recuo da pandemia no Brasil seria não apenas precipitada e falha tecnicamente, mas também perigosa, alertam cientistas.
Para membros de alguns dos principais grupos de estudos investigando a pandemia no país, a falta de uma resposta centralizada pelo governo federal e o uso de dados de internações fora de contexto estimulam o relaxamento precipitado de medidas ainda necessárias de isolamento social, o que prolonga o pico da doença no país e pode resultar em novos recordes de casos e mortes.
E o problema brasileiro pode ir além, como explica o neurocientista Miguel Nicolelis, que coordenou o Comitê Científico do Nordeste, criado em março de 2020 para organizar a resposta dos nove Estados da região à pandemia.
"Quando eu estava no comitê, no ano passado, apareciam números estáveis durante a semana e governadores já me ligavam dizendo que a pandemia tinha acabado", conta o cientista por telefone à BBC News Brasil.
"Houve uma queda porque medidas mínimas foram adotadas em alguns lugares, (...) mas essas quedas são temporárias. Essas mudanças estão dentro da margem de variação estatística e só servem para políticos brasileiros as usarem como desculpa pra relaxarem medidas", diz.
"Isso não é sustentável."
No fim de março, o mesmo cientista chamou atenção ao prever que o Brasil chegaria a 500 mil mortes até junho. Semanas mais tarde, a universidade de Washington fez estimativa semelhante, levando em conta uso de máscaras pela população, mobilidade social e ritmo da vacinação, e disse que, até 30 de junho, o país chegaria a um total de 562,8 mil mortes.
Ao se debruçar sobre os números atuais no Brasil, Nicolelis não só mantém a aposta, como vai além.
"No ritmo atual, nós não vamos nem conseguir vacinar as pessoas antes que alguma variante brasileira, ou da África do Sul, ou da Índia, ou da Inglaterra, escape às vacinas. Essa variante indiana é assustadora. Se as variantes entrarem aqui e passarem a competir com a P-1 (variante brasileira), e as vacinas que temos não derem conta, podemos ter um milhão de óbitos até 2022", diz.
Além de Nicolelis, a BBC News Brasil ouviu outros cientistas que haviam previsto nos últimos meses um cenário possível de 5 mil mortes diárias no Brasil.
Todos concordam que os índices no país continuam acima de limites aceitáveis, reiteram a gravidade da pandemia no Brasil e apontam que as quedas em internações podem ser reflexo imediato de medidas de distanciamento adotadas irregularmente em alguns Estados, além dos primeiros efeitos práticos da vacinação no país.
"Método sanfona"
Dados do boletim epidemiológico mais recente do Observatório da Covid da Fiocruz, com base em números oficiais de 19 de abril, mostram que 17 capitais brasileiras tinham taxas de ocupação de leitos de UTIs em hospitais públicos superiores a 90%. Outras cinco tinham taxas superiores a 80%.
Só cinco capitais - Manaus (73%), Macapá (74%), Salvador (77%), Boa Vista (38%) e João Pessoa (59%) tinham ocupação menor do que 8 a cada 10 leitos.
Em semanas anteriores, o país chegou a ter recorde de 21 capitais com mais de 90% de ocupação.
Essa queda de 21 para 17 capitais, no entanto, significa pouco quando o tema é a gravidade da pandemia, já que a referência para estado considerado crítico na lotação de UTIs adotada por organismos internacionais e nacionais, como a Fiocruz, é de 80%.
Assim, apesar da oscilação, o Brasil continua com 21 dos 26 Estados, mais o Distrito Federal, nesta situação considerada alarmante.
"Muita gente está usando esses números pra argumentar contra o lockdown, mas isso é completamente ridículo", avalia Miguel Nicolelis. "Você tem 21 de 26 capitais em nível crítico de leitos de UTI, sem medicamentos, sem médico, com gente jovem morrendo com um dia de internação."
Ele continua: "O Brasil está se especializando no método sanfona de controle da pandemia. Fecham quando está altíssimo por uma, talvez duas semanas, e aí, quando cai 4 pontos, abrem tudo de novo e volta (a subir)".
Para a pesquisadora Margareth Portela, especialista em políticas e administração em saúde e uma das responsáveis pelo monitoramento do Observatório Covid-19, da Fiocruz, o país "está longe de uma situação de controle real".
"As últimas duas semanas mostram que estamos vivendo um cenário de desaceleração. Mas os dados em relação às taxas de ocupação de UTIs continuam muito elevados", ressalta.
Em entrevista ao jornal Estado de São Paulo, em 25 de março, um dos colegas de Portela no Observatório da Fiocruz, o professor Carlos Machado, afirmou que "se nada for feito, nada nos impedirá de chegar a quatro ou cinco mil óbitos por dia".
Ele se referia ao pior cenário e à necessidade de um lockdown mínimo de duas semanas, coordenado entre os governos federal, estadual e de municípios.
"De lá pra cá, vários Estados e vários municípios adotaram medidas restritivas mais rigorosas", pondera hoje a pesquisadora, "o que com certeza deve ter tido um impacto e deve explicar um pouco dessa redução que de fato se observa".
Entre os Estados que se destacaram com medidas de restrição, Portela destaca Bahia e São Paulo.
O primeiro vem implementando medidas restritivas desde 26 de fevereiro e, depois de algumas tentativas de reabertura, prorrogou toque de recolher e proibição de eventos públicos até 3 de maio.
Já o governo de São Paulo manteve o Estado em "fase emergencial" entre 15 de março e 9 de abril, o nível mais restritivo de controle da pandemia, quando locais e serviços não-essenciais como academias, salões de beleza, templos religiosos, cinemas, shoppings e lojas de rua foram fechados.
O fantasma dos repiques
A BBC News Brasil também conversou com o professor do departamento de Estatística da UFF (Universidade Federal Fluminense) Marcio Watanabe.
Ele assina um estudo, publicado em 24 de abril, que estimava mortes diárias no Brasil a partir de um modelo matemático que analisava números de mais de 50 países afetados pela pandemia, coletados entre setembro de 2020 e março deste ano.
O levantamento apontava que o pico de óbitos no Brasil aconteceria "provavelmente em abril ou início de maio, com um número calculado entre 3 mil e 5 mil mortes por dia".
À epoca, Watanabe destacou que os números reais eram sujeitos ao ritmo de vacinação e à aplicação de medidas restritivas nos Estados.
A BBC News Brasil perguntou se os novos números que sugerem desaceleração em internações surpreeendem o pesquisador.
"Houve uma série de medidas ali no final de março pra tentar conter aquele aumento explosivo. As medidas, muitas, tiveram visivelmente impacto na curva de casos e de óbitos, e agora a gente vai ter que ver qual vai ser o impacto dessa reabertura que já está ocorrendo em muitos lugares", diz.
Mas, ele ressalta que não é momento para relaxamento.
"Pode ser que tenhamos repiques, ou seja, depois de ter essa pequena queda, que a gente volte a ter aumento de casos em alguns lugares, principalmente os mais povoados", prevê.
Ele explica que o impacto das medidas de distanciamento social nas taxas de contágio depende diretamente da duração das medidas.
"No caso do Brasil, as medidas foram retiradas de maneira prematura, no sentido de que a gente via uma pequena diminuição nas internações, e assim que se viu essa pequena diminuição as medidas foram retiradas. Então, existe uma tendência de o contágio voltar a aumentar."
A maior parte dos países que conseguiram reduzir drasticamente o número de internações e mortes investiu em longos períodos de lockdown nacional. No Reino Unido, por exemplo, a população enfrentou no começo de janeiro o terceiro lockdown rígido desde o início da pandemia. Na época, o país tinha, proporcionalmente, quase 30% de mortes a mais que o Brasil tem hoje.
Com mais de 3 meses de novo isolamento total, associado a auxílios financeiros para pessoas e empresas e um plano robusto de vacinação, o país viu as mortes despencarem para um total de 6, no último dia 26.
"É muito importante que todos entendam que a redução em hospitalizações, mortes e infecções não foi por causa do programa de vacinação", justificou o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, na primeira quinzena de abril, quando uma reabertura gradual foi autorizada.
"As pessoas não se dão conta que o lockdown foi extremamente importante pra que tivéssemos essa melhora."
Ponto para a vacinação
Para a pesquisadora da Fiocruz, Margareth Portela, o avanço da vacinação no Brasil, ainda que lento, também pode ter influenciado positivamente nas quedas em internações notadas nas últimas semanas.
"No histórico brasileiro de enfrentamento à covid, não há muitas experiências de lockdown no sentido próprio da palavra, mais restritivo. Então você continua tendo circulação de pessoas, transporte público lotado. A gente nunca teve um lockdown real e não estamos em uma situação tranquila", diz.
"Mas a questão da vacinação, ainda que lentamente, está avançando."
Segundo a pesquisadora, o país "já começa a ver redução nas internações de pessoas mais idosas, que já estão vacinadas no Brasil".
"Isso está fazendo diferença", ela comemora. "Entre pessoas mais idosas, por exemplo, a partir de 70 anos, já se observa, sim, uma queda importante."
Até a publicação desta reportagem, 30,7 milhões de brasileiros (ou 14,5% da população) haviam tomado a primeira dose de vacinas, enquanto 14,6 milhões (6,6%) receberam a segunda.
O ritmo da vacinação no país e a atuação do governo no combate à pandemia de modo geral, colocaram a administração do presidente Jair Bolsonaro no centro de uma CPI, que neste momento apura "ações e omissões" do governo federal na pandemia.
A compra de vacinas é um dos pontos mais sensíveis da investigação.
- As perguntas que devem ser feitas aos primeiros convocados a depor na CPI da covid
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