Com o número de mortes diárias por covid-19 aproximando-se de 2 mil e a escassez de leitos nas unidades de terapia intensiva (UTIs), várias cidades brasileiras e o Distrito Federal determinaram o fechamento de diversos tipos de estabelecimentos nas últimas semanas. A medida extrema, defendida por epidemiologistas em situações como a que o Brasil enfrenta, é contestada por parte da população, como um grupo que saiu às ruas do DF, na sexta-feira, com cartazes em que diziam que “lockdown não funciona”. Contudo, a ciência desmente essa afirmação.
Estudos baseados nas experiências de países que endureceram as normas de distanciamento social mostram que o lockdown evita contágios e milhares de mortes em potencial. Porém, os cientistas também ressaltam que de nada adianta fechar comércio e escolas sem que outras ações sejam adotadas em conjunto, como a testagem em massa e, do ponto de vista individual, o respeito ao uso de máscaras e a outras medidas sanitárias. Os resultados positivos também dependem do nível de adesão populacional.
O primeiro grande estudo que avaliou a medida foi publicado em meados do ano passado. O trabalho baseou-se na experiência dramática de 11 países europeus que, no início da pandemia, quando pouco se sabia sobre o vírus, registraram recordes de óbitos, enquanto médicos tinham de escolher a quem prestar socorro. Publicado na revista Nature, o estudo do Imperial College de Londres concluiu que, de março até 8 de maio, quando houve a reabertura na Europa, 3,2 milhões de vidas foram poupadas.
Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores usaram dados de óbitos e desenvolveram um modelo que calculou como as intervenções não farmacológicas, como fechamento de fronteiras e lockdown, contribuíram para evitar mais mortes. O modelo estimou o número de vidas perdidas caso nenhuma medida tivesse sido adotada. Com as pessoas dentro de casa e apenas os negócios essenciais abertos, o número de reprodução do vírus (potencial de transmissão, sendo que, quando maior que 1, indica que cada doente contamina ao menos mais um indivíduo) diminuiu, em média, 82%.
“Esses dados sugerem que, sem quaisquer intervenções, como bloqueio e fechamento de escolas, poderia ter havido muito mais mortes por covid-19. A taxa de transmissão diminuiu de níveis elevados para níveis sob controle em todos os países europeus que estudamos”, disse, à época, Samir Bhatt, autor do estudo. Agora, mais recentemente, o Imperial College de Londres demonstrou, novamente, que o lockdown é capaz de reduzir substancialmente a transmissão do Sars-CoV-2. Mas, dessa vez, o estudo baseou-se apenas na experiência do Reino Unido, que precisou adotar a medida novamente em janeiro, quando uma nova variante fez explodir o número de casos.
Vacinação
Segundo o estudo, feito com dados do programa React, que armazena informações sobre testes de coronavírus, até a segunda semana de fevereiro, o número de pessoas infectadas caiu em mais de dois terços. A prevalência da infecção foi reduzida, em todas as idades, a uma taxa semelhante, sugerindo, segundo os autores, que as tendências de queda se devem ao bloqueio e não ao impacto da vacinação, já que nem todas as faixas etárias foram imunizadas. “Esses resultados encorajadores mostram que as medidas de bloqueio estão efetivamente reduzindo as infecções”, comenta Paul Elliott, diretor do React. Os pesquisadores estimaram a queda comparando os registros de contaminação de janeiro com os coletados entre 4 e 13 de fevereiro.
Também fazendo comparações, pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Francisco publicaram, no fim de dezembro, um estudo mostrando que o número de mortes acima do esperado no estado norte-americano foi 2,2 vezes menor no período de lockdown. O artigo, divulgado na revista Jama, da Academia de Medicina dos EUA, usou dados oficiais de óbitos desde 2016, o que possibilitou aos pesquisadores estimar a média de mortes mês a mês e, assim, calcular o excesso, ou seja, uma quantidade maior do que a esperada para o período estudado.
Com essas informações em mãos, os pesquisadores compararam dois períodos: 1 de março a 9 de maio de 2020 (lockdown) e 10 de maio a 22 de agosto (reabertura). Independentemente de faixa etária, etnia, escolaridade e renda, os óbitos em excesso foram maiores, semana a semana, no período de reabertura. Na média, 2,2 vezes superior.
Um dos autores do primeiro estudo da Imperial College sobre os efeitos do lockdown na Europa, Anna Jöud, epidemiologista da Universidade de Lund, destaca, agora, que o sucesso da estratégia depende de um conjunto de medidas, incluindo a colaboração de cada pessoa. “As várias intervenções não parecem funcionar isoladamente umas das outras, mas, muitas vezes, dependem umas das outras. Uma mudança no comportamento influencia o efeito de outras intervenções. Quanto e de que forma é mais difícil de saber”, diz.
Retomada
Segundo um painel de especialistas que publicou, recentemente, um artigo na revista The Lancet sobre as medidas mais eficazes adotadas na Europa e na Ásia, diferenças nos resultados obtidos pelo fechamento total ou parcial de comércio e serviços se dão justamente devido à adoção de estratégias imediatas ou de longo prazo. Os cientistas defendem que, para reabrir com segurança e colher frutos do período de fechamento, governos devem investir em uma série de ações, que inclui um sistema de monitoramento robusto, testagens contínuas da população, insistência nas campanhas educativas para uso de máscara e manutenção do isolamento social.
“A covid-19 é uma doença grave, que permanecerá conosco por muito tempo”, destaca a principal autora, Helena Legido-Quigley, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres. “Há cada vez mais consciência de que o alívio do bloqueio não se trata de retornar ao estado normal pré-pandêmico, e os governos precisam encontrar estratégias que impeçam o rápido crescimento de infecções de forma sustentável e aceitável para o público ao longo de muitos meses.”
Riscos psiquiátricos
Apesar de necessário em momentos de crise, o lockdown tem efeitos alarmantes na saúde mental, especialmente para jovens com menos de 30 anos e pessoas com problemas preexistentes. Essa é a conclusão de um novo estudo da Universidade de Copenhague e da Universidade College London, baseado em dados de 200 mil cidadãos em toda a Europa. Os cientistas coletaram e analisaram informações de saúde mental de quatro países diferentes (Dinamarca, França, Holanda e Reino Unido) durante o primeiro bloqueio na primavera e no início do verão de 2020. “Estudamos diferentes fatores de saúde mental, como solidão, ansiedade e preocupações relacionadas à covid-19. Os níveis mais elevados de solidão foram observados entre os jovens e pessoas com doenças mentais preexistentes”, afirma o professor-assistente Tibor V. Varga, do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Saúde e Ciências Médicas da Universidade de Copenhague. Os pesquisadores sugerem que os subgrupos identificados pelo estudo como particularmente propensos a sentirem solidão e ansiedade devem ser acompanhados de perto para evitar desafios futuros.