A Sputnik V, vacina desenvolvida pelo laboratório russo Gamaleya, apresentou 91,6% de eficácia contra a covid-19 nos testes da fase 3. A notícia animadora foi divulgada, ontem, em um artigo científico publicado na revista The Lancet. Trata-se de uma resposta aos especialistas da área, que vinham criticando a ausência da divulgação de dados sobre a concepção do fármaco, que está sendo usado em países como Argentina, Argentina e Bolívia, além da própria Rússia.
Inicialmente, embora tenha celebrado o resultado — “é uma boa notícia” —, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirmou, por meio de nota, que o imunizante em questão não seria o mesmo submetido pela União Química para uso emergencial no Brasil. Horas depois, em outro comunicado, assinalou ter recebido a informação da farmacêutica de que os dois produtos têm o mesmo padrão.
O estudo divulgado na The Lancet mostrou os dados obtidos durante a terceira e última etapa dos testes clínicos da Sputnik V, que contou com a participação de quase 20 mil pessoas. Os voluntários receberam, entre setembro e novembro do ano passado, as duas doses da fórmula — ou de placebo —, com três semanas de intervalo entre elas. Os cientistas realizaram testes PCR após a primeira aplicação e, após a segunda injeção, rastrearam a presença do vírus apenas em pessoas que apresentaram sintomas da covid-19.
Ao fim dos testes, 16 voluntários dos 14,9 mil que receberam doses da Sputnik V foram diagnosticados como casos positivos do novo coronavírus (ou seja, 0,1%), contra 62 dos 4,9 mil que receberam um placebo (1,3%). “Os dados observados mostram que a Sputnik V reduz em 91,6% o risco de desenvolver manifestações sintomáticas”, ressaltaram os autores no estudo, que foi liderado por Denis Y Logunov, pesquisador do Instituto Gamaleya, em Mostou.
A The Lancet ressaltou que a ausência de análises PCR em todas as fases do estudo pode limitar as interpretações, o que exige uma investigação mais detalhada futuramente. “Serão necessárias novas pesquisas para determinar a eficácia da vacina nos casos assintomáticos”, afirmaram os editores da revista, em um comunicado.
Reações leves
Os cientistas russos ressaltaram ainda que houve uma taxa baixa de efeitos adversos. “Não foi registrado dano colateral sério associado à vacinação, e todos os eventos relatados foram leves, como sintomas semelhantes ao da gripe, fraqueza, indisposição e dor no local da injeção”, detalharam os pesquisadores no artigo.
Os resultados divulgados na revista corroboram as informações iniciais da Rússia, recebidas com desconfiança por cientistas internacionais, devido ao ritmo acelerado da pesquisa e a falta de divulgação de dados sobre as análises realizadas no ano passado.
“O desenvolvimento da vacina Sputnik V foi criticado por sua precipitação, por ter pulado etapas, além da falta de transparência. Mas os resultados vistos agora são claros e o princípio científico dessa vacina ficou demonstrado nesse trabalho”, declararam o pesquisador Ian Jones, da Universidade de Reading, e a professora Polly Roy, da London School of Hygiene and Tropical Medicine, ambos do Reino Unido, em um comentário publicado na The Lancet. “Isso significa que temos uma vacina adicional para ser usada no combate a covid-19”, enfatizaram os especialistas.
Coordenadora do Departamento Científico da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai), Anna Karolina Barreto Marinho destaca que a divulgação dos detalhes relativos aos testes clínicos da Sputnik V é uma resposta há muito aguardada pela comunidade médica. “Recebemos dos desenvolvedores informações positivas relacionadas às análises iniciais, mas não tínhamos como comprovar. Com isso, surgiram as dúvidas. Agora, tudo está mais claro e o que vimos é muito interessante”, enfatizou.
A imunologista ressaltou que, além da alta eficácia, outro dado relevante diz respeito ao nível de segurança da vacina. “Não foram observados efeitos preocupantes, o que também aconteceu em estudos de outros imunizantes para a covid-19 apresentados até agora. Isso faz com que essa fórmula possa ser usada com tranquilidade”, considerou. “É, sim, um grande avanço e nos anima bastante, temos agora mais uma opção para proteger a população.”
Mesmo padrão
Na nota em que apontou divergência entre o imunizante avaliado pela revista britânica e o submetido para análise de seus especialistas, a Anvisa apontou que o estudo envolvia a “vacina em forma líquida armazenada a –18°C”. Mais tarde, a agência comunicou ter sido informada de que o imunizante a ser examinado para uso emergencial terá “o mesmo padrão de temperatura e conservação” do desenvolvido em Moscou.
A agência brasileira enfatizou que, para decidir, necessita ter acesso aos dados completos. “É necessário saber se os resultados encontrados são extrapoláveis, ou seja, se os resultados da vacina líquida a –18°C valem também para a vacina que a União Química quer trazer para o Brasil. Para esse tipo de avaliação, é necessário estudo de comparabilidade entre os produtos”, especificou.
De acordo com a nota inicial da Anvisa, há dados relevantes ainda não enviados pela União Química, entre eles, sobre fase 3 que demonstrem ao menos 50% de eficácia. Até o momento, tiveram uso emergencial autorizado na campanha de imunização brasileira, a CoronaVac, desenvolvida pela Sinovac Biotech/Instituto Butantan, e a Covishield, da AstraZeneca/Universidade de Oxford.
Ação dupla
O imunizante russo foi desenvolvido com base em uma estratégia bastante explorada na criação de vacinas: o uso de um vírus modificado em laboratório para ser inofensivo, mas capaz de combater a covid-19 no organismo. A mesma tecnologia foi usada por desenvolvedores de outros fármacos para o novo coronavírus, como a da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Entretanto, os cientistas do Instituto Gamaleya foram os únicos que se valeram de dois patógenos, com o objetivo de aumentar ainda mais os níveis de proteção ao Sars-CoV-2.