Às vezes, um vaso é apenas um vaso. Outras, é um portal para um novo plano de percepção.
Na obra-prima As Meninas, um jogo de sombras e espelhos que nunca deixou de intrigar, um pequeno jarro de barro que pode passar despercebido no centro da tela transforma a pintura — de um retrato da vida palaciana em um tratado sobre a natureza ilusória e transcendental da existência.
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Essa obra chama a atenção de especialistas há mais de três séculos e meio, desde que o pintor espanhol Diego Velázquez (1599-1660) a criou em 1656.
Para entender como a presença aparentemente casual de uma peça de cerâmica da América Latina se converte em uma lente para captar o mundo de uma nova maneira, devemos lembrar o contexto cultural em que a pintura surgiu e o que ela pretendia retratar.
Personagens
A obra mostra um autorretrato do artista aos 57 anos, quatro anos antes de sua morte em 1660 — e depois de ter passado as últimas três décadas como pintor da corte do rei Felipe 4º.
Com a paleta em mãos, do lado esquerdo da cena, a "selfie" em tamanho natural de Velázquez nos observa como se fôssemos o objeto que ele está tentando capturar na enorme tela à sua frente. É uma pintura sobre uma pintura na superfície imaginária de uma tela que não podemos ver.
No centro do quadro, à esquerda de Velázquez, vemos a infanta Margarita, filha do rei Felipe 4º e de Mariana da Áustria, com duas damas de companhia ao seu lado. O resto do aposento tenuamente iluminado do Palácio Real de Madri se completa com um grupo heterogêneo de cortesãos.
Portal da percepção
Por uma porta aberta no fundo da cena, uma silhueta enevoada, do camareiro da rainha, se prepara para deixar o quadro, mas não antes de parar para nos olhar, como se quisesse que o seguíssemos rumo ao desconhecido.
À esquerda da porta, um espelho reflete como espectros os rostos do rei e da rainha, cuja localização no mundo da obra é desconhecida. Os monarcas estão lá, mas não estão.
Estes aspectos da obra — a porta aberta e os rostos reais no espelho fantasmagórico — levaram muitos especialistas a suspeitar que há muito mais em ação na pintura do que nossos olhos conseguem enxergar.
A presença "ausente" do rei e da rainha, que aparecem na pintura mas não na cena, nos obriga a concluir que se trata de uma obra filosófica sobre a substância da matéria e a natureza da existência do agora, como uma imagem congelada de uma cena da agitada vida palaciana.
O enigma de seu reflexo garante que não sejamos espectadores passivos, mas que busquemos ativamente compreender em que parte do mundo eles se encontram.
O espelho os coloca onde estamos, como sujeitos de um retrato que Velázquez está pintando?
Ou o espelho revela o que já está naquela grande tela, da qual só vemos o verso? Esta segunda opção faria com que a imagem no espelho fosse um reflexo imaginário da superfície de uma pintura imaginária que retrata personagens cujos paradeiros só podemos imaginar.
Um ponto de fuga que desaparece
As Meninas brinca com a nossa mente e com a nossa retina.
Por um lado, as linhas de perspectiva da tela convergem e direcionam o nosso olhar para um ponto de fuga, que é a porta. Mas, por outro lado, o espelho chama nossa atenção para a parte posterior da pintura, para avaliar a possível posição dos espectros reais.
Somos constantemente arrastados para dentro e para fora da obra, enquanto o aposento que Velázquez pinta se torna uma estranha dimensão elástica que é ao mesmo tempo transitória e eterna, um reino tangível, mas também nebuloso e imaginário.
As imagens de Velázquez têm um efeito quase psicotrópico sobre nós — com um estado de transe, que tem atraído o público geração após geração. Talvez estejamos descrevendo uma alucinação ou visão mística em vez de uma pintura.
O jarro
Fácil de ignorar na encruzilhada de perspectivas ópticas, filosóficas e psicológicas que se misturam na pintura, há um objeto que talvez ofereça uma pista material para o efeito pretendido pela obra-prima alucinógena de Velázquez em nossa consciência: um ponto vermelho vibrante na forma de um pequeno jarro.
Este modesto jarro, que uma das criadas oferece à jovem infanta (e a nós) em uma bandeja de prata, deveria ter sido reconhecido pelos contemporâneos como a materialização das propriedades que alteram a mente e o corpo.
Conhecida como búcaro, esta simples peça de cerâmica era um dos muitos artesanatos que os exploradores espanhóis levavam do Novo Mundo para o Velho Mundo nos séculos 16 e 17.
Segundo o historiador de arte Byron Ellsworth Hamann, que estudou cuidadosamente a origem de muitos dos objetos que aparecem nos quadros de Velázquez, incluindo a bandeja de prata de As Meninas, o brilho característico do jarro e o tom avermelhado o distinguem como um produto de Guadalajara, no México.
Uma mistura secreta de especiarias locais incorporadas à argila quando o vaso era fabricado garantia que qualquer líquido contido ali fosse delicadamente perfumado. Mas o búcaro era conhecido por cumprir outra função mais surpreendente.
Alucinações
Nos círculos aristocráticos espanhóis do século 17, se tornou uma espécie de modismo entre meninas e mulheres jovens mordiscar as bordas desses jarros porosos de argila e lentamente devorá-los por completo.
Uma consequência química do consumo da argila estrangeira era um drástico clareamento da pele até adquirir uma tonalidade quase fantasmagórica, o que na época era uma aspiração estética e uma demonstração de riqueza, ao indicar que o sustento da pessoa não dependia do trabalho feito sob o sol que escurece a pele.
Por mais estranho que pareça, consumir a argila do búcaro era menos perigoso do que algumas alternativas contemporâneas, como espalhar uma pasta veneziana feita de chumbo, vinagre e água no rosto, que resultava no envenenamento do sangue, queda de cabelo e morte.
Mas a ingestão da argila do vaso também causava a perigosa redução dos glóbulos vermelhos, paralisia dos músculos e destruição do fígado. Provocava ainda alucinações. De acordo com a autobiografia de uma pintora e mística da época, Estefanía de la Encarnación, publicada em Madri em 1631, o vício de mordiscar búcaros levava a uma maior consciência espiritual.
Apesar de lamentar ter levado "um ano inteiro" para se livrar "deste vício", ela afirma que o efeito narcótico provocava visões que permitiram a ela "ver Deus mais claramente".
Símbolo do declínio imperial
Quando mapeamos os efeitos fisiológicos e psicotrópicos da dependência do búcaro no eterno enigma de As Meninas, a pintura ganha um significado novo e talvez ainda mais perturbador.
A consciência alterada da infanta, cujos dedos circundam o búcaro (será que ela teria acabado de mordiscá-lo?), se expande de repente do epicentro da ação da tela para toda a lógica da pintura. Além disso, podemos ver que o pincel de Velázquez aponta para uma mancha do mesmo vermelho intenso em sua paleta, a mesma tinta de onde se originou o búcaro.
Fantasmagórica na palidez, a infanta também parece levitar do chão, efeito proporcionado pela sombra que o artista insere sob a barra do seu vestido em forma de paraquedas. Inclusive os pais da infanta, cujas imagens flutuam diretamente acima do búcaro, começam a parecer espíritos holográficos projetados de outra dimensão, em vez de meros reflexos em um espelho.
De repente, vemos As Meninas não apenas como uma fotografia do momento, mas uma reflexão sobre a evanescência do mundo material e da inevitável evaporação do ser. Ao longo de quase quatro décadas de serviço à corte, Velázquez testemunhou o declínio gradual do domínio de Filipe 4º. O mundo escapava de suas mãos.
O búcaro, um troféu das proezas coloniais e do poder imperial minguante, é o símbolo perfeito desse declínio e do desapego da miragem do agora. Ele habilmente ancora a cena confusa e, ao mesmo tempo, está diretamente envolvido em sua confusão.
Simultaneamente físico, psicológico e espiritual em suas implicações simbólicas, o jarro é o buraco da fechadura pelo qual o significado mais profundo da obra-prima de Velázquez pode ser vislumbrado e desvendado.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.
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