Há quase um ano, o mundo se deparou com uma doença nova e altamente infecciosa. Desde então, a covid-19 atingiu mais de 60 milhões de pessoas e matou quase 1,5 milhão delas. E os números continuam crescendo. Diante de um inimigo tão poderoso e devastador, cientistas de todo o mundo se uniram com o propósito de dar uma resposta rápida para a pandemia e entregar uma vacina à população em tempo recorde, o que deve ocorrer nos próximos meses. No momento, são mais de 200 imunizantes em estudo, 10 deles nas fases finais de teste e algumas em produção.
A aprovação de uma vacina não é um processo simples. Começa com os testes pré-clínicos, que são feitos em laboratório, com células e/ou animais (in vitro e/ou in vivo). Muitas das tentativas nem passam dessa etapa, pois a solução pode não se mostrar segura ou capaz de gerar proteção contra o micro-organismo que se quer combater. As que avançam chegam aos testes clínicos, ou seja, quando são testadas em humanos. Esses testes ocorrem em três fases, que dizem se o imunizante é seguro e eficaz nas pessoas (veja quadro abaixo). Se tudo ocorrer como previsto, a vacina deverá, então, ser aprovada pelos sistemas reguladores de cada país, que, no Brasil, é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Todo esse cuidado, aliado à dificuldade técnica natural de uma empreitada desse tipo, faz com que uma vacina precise de anos ou até mesmo décadas para ficar pronta. Como, então, em cerca de um ano, foi possível chegar a mais de uma fórmula contra a covid-19? "A ciência responde quando se investe nela. O que estamos vendo, essa resposta rápida e heroica, é o que acontece quando há investimento", destaca Mellanie Fontes-Dutra, doutora em neurociência e coordenadora da Rede Análise Covid-19.
A médica epidemiologista Denise Garret concorda, e assegura que a rapidez na criação de vacinas contra o novo coronavírus não trouxe prejuízos para a segurança das pessoas. "Todas as fases estão sendo cumpridas. Uma vez que a vacina seguiu todos os critérios científicos, não há por que ter medo. As fases pré-clínicas estão sendo encurtadas, mas a fase três está sendo seguida a risca", afirma. Garret, que é vice-presidente do Instituto Sabin de Vacina, acrescenta que o país onde um imunizante foi produzido pouco importa. Segundo ela, dúvidas sobre a segurança e eficácia de uma vacina produzida na China, por exemplo, não fazem sentido. "O mesmo processo científico tem de ser seguido por todas (as vacinas). A China tem tradição em produzir vacinas e, desde que seja com transparência e a gente possa acompanhar os dados, não há motivo para receio", destaca.
Pesquisas interrompidas e retomadas
O fato de algumas pesquisas terem sido interrompidas para que se verificassem possíveis efeitos colaterais preocupantes em alguns voluntários não deve gerar preocupação, mas ser visto como mais um sinal de que a segurança está sendo devidamente checada. Isso ocorreu, por exemplo, com as vacinas da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e da Jhonson & Jhonson. "Você está testando milhares de pessoas e estudo tem de ser interrompido por qualquer evento adverso grave até que se avalie se tem ou não relação com a vacina. Se ficar comprovado que a vacina causou o evento, o estudo é suspenso e a vacina é jogada no lixo”, explica Denise Garret.
Nos dois casos acima, verificou-se que os eventos não tinham relação com os imunizantes e os estudos foram retomados. Neste mês, os testes da Coronavac, desenvolvida em parceira pela empresa chinesa Sinovac e o Instituto Butantã, de São Paulo, também foram paralisados pela Anvisa e retomados após verificar que a morte de um voluntário havia sido suicídio e não tinha relação com a vacina. "No caso da Coronavac, ela foi extremamente politizada e isso pode fazer com que as pessoas fiquem inseguras de participar. O estrago pode ser muito grande", lamenta a infectologista Natália Pasternack.
Os primeiros resultados divulgados pela Sinovac indicam que somente 35% dos voluntários apresentaram algum tipo de reação, sempre leve. De acordo com Mellanie Fontes-Dutra, todas as vacinas em teste têm demonstrando resultados promissores. "Todas elas na fase 1 e 2 se mostraram super-seguras e, na fase três, está se verificando se são eficazes. Estamos buscando possíveis efeitos adversos, se eles existem ou não. Nos três casos, não tinha relação", enfatiza.
Genoma decodificado
A união de pesquisadores e centros de estudo e os investimentos grandiosos foram, sem dúvida, os principais responsáveis por um desenvolvimento tão rápido. Mas outros fatores colaboraram para que o tempo de produção de algumas das vacinas fosse tão curto. O primeiro deles foi a capacidade de a China decodificar o genoma do vírus Sars-Cov-2 em tempo recorde. Esse processo, em muitos casos, demora anos.
Além disso, como a família dos coronavírus já era conhecida, havia muitos estudos em andamento que adiantaram o processo. puderam ser aproveitados. "As empresas já tinham plataformas desenvolvidas. Além disso, elas estão fazendo grandes apostas, começando a produção antes de terminar as pesquisas, o que facilitará a disponibilidade depois de aprovadas”, destaca Melissa Palmieri, especialista em medicina preventiva e membro da Doctoralia.
A distribuição mais rápida, por sinal, tem sido outra preocupação das autoridades. Em abril, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou uma iniciativa nesse sentido. No caso do Brasil, o governo anunciou que a vacina será disponibilizada pelo Programa Nacional de Imunização (PNI) gratuitamente.
Ameaça das fake news
Todo esse processo, porém, enfrenta ainda outro poderoso inimigo que ameaça o sucesso da empreitada: as fake news. "Chip na vacina", "vacina vai mudar o DNA" e "a vacina é feita com células de bebês abortados" são algumas das mentiras espalhadas nas redes sociais e grupos de WhatsApp e que deixam os cientistas preocupados, pois levam parte da população a temer a vacina. "Nós vamos precisar de uma grande cobertura vacinal e, para isso, precisamos do engajamento das pessoas em se vacinar", destaca Mellanie.