Até pouquíssimo tempo — coisa de uma década e meia —, o Homo neanderthalensis, ou apenas neandertal, era o primo pobre da humanidade. Tida como brutamonte, intelectualmente inferior e incapaz de fazer rituais sofisticados, a espécie extinta há cerca de 50 mil anos na Europa começou a ser reabilitada por estudos arqueológicos e genéticos. As pesquisas não só descobriram padrões culturais muito semelhantes aos do homem moderno como revelaram proximidades no DNA, a ponto de se constatar que houve procriação com o Homo sapiens — um sinal de que não eram tão diferentes assim.
Esses estudos continuam e, recentemente, trouxeram à luz novas evidências de sofisticação da espécie e a aproximaram ainda mais do homem moderno. Por exemplo, agora se sabe que há muito mais do neandertal nos africanos do que se poderia imaginar. Enquanto a herança genética que eles deixaram para povos atuais que vivem nas Américas, na Europa e na Ásia já foi detectada pelo sequenciamento total do genoma neandertalense (2%), até hoje quase nada se sabia da influência desse homem extinto em um continente que parecia distante demais das cavernas europeias habitadas por ele.
Em um artigo publicado na revista Cell, uma equipe de pesquisadores do Instituto Lewis-Singer de Genômica Integrativa (LSI, sigla em inglês), da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, aproximou a população ancestral aos africanos modernos graças a uma nova tecnologia, a IBDmix. “Essa é a primeira vez que podemos detectar o sinal real da ancestralidade neandertal em africanos”, disse o coautor Lu Chen, pesquisador associado do LSI. “E, surpreendentemente, a análise mostrou um nível mais alto do que pensávamos.”
O método desenvolvido pelos pesquisadores de Princeton vem do princípio genético “identidade por descendência” (IBD), no qual uma seção do DNA em dois indivíduos é idêntica porque eles compartilharam um ancestral comum. O comprimento do segmento IBD depende de há quanto tempo existe essa ligação. Por exemplo, irmãos compartilham longos segmentos IBD porque o ancestral compartilhado é apenas de uma geração anterior. Da mesma forma, primos de quarto grau têm segmentos mais curtos porque o ancestral comum é de várias gerações anteriores.
A equipe de Princeton aproveitou o princípio do IBD para identificar o DNA do neandertal no genoma humano, distinguindo sequências que parecem semelhantes devido ao compartilhamento de um ancestral em um passado muito distante (cerca de 500 mil anos atrás), daqueles que resultantes de uma interação mais recente (por volta de 50 mil anos atrás). Adaptado, o IBDmix usa características da sequência do neandertal, como a frequência das mutações ou o comprimento dos segmentos do IBD, para distinguir a ancestralidade compartilhada do cruzamento recente.
Assim, os pesquisadores foram capazes de identificar a ancestralidade neandertal em africanos pela primeira vez e de fazer novas estimativas da herança da espécie em não africanos, que mostraram que europeus e asiáticos têm níveis mais próximos do que os descritos anteriormente. “É possível que a gente tenha de voltar e revisitar um monte de resultados da literatura científica publicada e avaliar se essa mesma tecnologia muda o que sabemos sobre o fluxo gênico em outras espécies”, destaca Kelley Harris, geneticista populacional da Universidade de Washington que não esteve envolvido no estudo.
Os cientistas aplicaram a tecnologia IBDmix no genoma de 2.504 indivíduos modernos do Projeto 1000 Genoma — que representa populações geograficamente diversas — e usaram a referência de um espécime escavado no Molte Altai (Sibéria) para identificar a sequência do neandertal nessas pessoas. Pela primeira vez, foi detectada uma ancestralidade significativa do Homo neanderthalensis nos africanos modernos: em média, 17 megabases (Mb) de sequência de neandertal por indivíduo nas amostras analisadas (o que corresponde a, aproximadamente, 0,3% do genoma). Para comparação, estudos anteriores baseados em métodos defasados relataram menos de uma megabase. Mais de 94% da sequência de neandertal identificada em amostras africanas foi compartilhada com não africanos.
Os pesquisadores também observaram níveis de ancestralidade neandertal em europeus (51 Mb/indivíduo), asiáticos do leste (55 Mb/indivíduo) e sul-asiáticos (55 Mb/indivíduo) que eram surpreendentemente semelhantes entre si. Já os asiáticos orientais tinham apenas 8% mais herança neandertal em comparação com os europeus. “Isso sugere que a maior parte da ancestralidade neandertal que os indivíduos têm hoje pode ser rastreada até um evento de hibridização comum envolvendo a população ancestral de todos os não africanos logo após a dispersão para fora da África”, diz o geneticista que liderou os estudos, Joshua Akey.
Fluxo gênico
Se a África é o berço da humanidade — de onde todos os humanos das mais diferentes espécies que já pisaram na Terra saíram —, é impossível não se perguntar como os africanos modernos compartilham DNA com um povo extinto há 50 mil anos na Europa. Akey explica que o fluxo gênico ocorreu nas duas direções. Primeiramente, há 200 mil anos, mais de um grupo de Homo sapiens saiu da África e procriou com neandertais, introduzindo o DNA humano moderno nos genomas dos neandertais.
Da mesma forma, europeus e asiáticos que compartilhavam genes com o Homo neanderthalensis migraram de volta ao continente africano, onde esse material foi sendo introduzido. “Fico impressionado com o fato de que, muitas vezes, conceituamos a história humana em termos muito simples”, diz Akey. “Por exemplo, imaginamos que houve uma única dispersão para fora da África que levou ao povoamento do mundo. No entanto, nossos resultados mostram que essa história era muito mais interessante e havia muitas ondas de dispersão para fora da África, algumas das quais levaram à mistura entre humanos modernos e neandertais que vemos nos genomas de todos os indivíduos vivos hoje.”
Cerimônias fúnebres
“Nos últimos anos, vimos evidências crescentes de que os neandertais eram mais sofisticados do que se pAdicionarensava, desde pinturas em cavernas até o uso de conchas decorativas e de garras de animais, usadas como adorno ou amuleto, em colares”, diz Emma Pomeroy, pesquisadora do Departamento de Arqueologia de Cambridge, no Reino Unido. Neste ano, ela revisitou descobertas feitas num sítio arqueológico neandertal no Curdistão iraquiano que sugerem a prática de enterrar flores junto aos restos mortais de adultos e crianças. Nesse local, há evidências de que a antiga espécie humana destinou uma caverna unicamente para depositar seus mortos.
Para saber mais
Habilidosos e adaptáveis
Junto com um povo asiático conhecido como denisovano, os neandertais são nossos parentes humanos mais próximos. A espécie tem uma longa história evolutiva. Os neandertais mais conhecidos viveram entre cerca de 130 mil e 50 mil anos atrás. A julgar pela evidência fóssil de Sima de los Huesos, no norte da Espanha, e de Swanscombe, em Kent (Inglaterra), já estavam bem estabelecida na Europa há 400 mil anos. Eram adaptáveis, vivendo em ambientes de estepe frias e em florestas temperadas quentes.
Sabe-se, por ferimentos encontrados em suas presas — como mamutes, bisões e renas —, que os neandertais eram caçadores proficientes, inteligentes e capazes de se comunicar. Danos ósseos curados e não curados encontrados nos indivíduos da espécie sugerem que eles mataram animais grandes à queima-roupa — uma estratégia arriscada que exigiria considerável habilidade, força e bravura. A espécie também desenvolveu a habilidade de fazer fogo há pelo menos 200 mil anos.
Embora não haja consenso sobre a extinção dos neandertais, algumas teorias sugerem que a concorrência com o homem moderno, que começou a chegar na Europa 10 mil anos antes, pode ter contribuído, assim como as mudanças climáticas. O que os pesquisadores concordam, hoje, é que esse não foi um único fenômeno. Os primos mais próximos do Homo sapiens teriam, na verdade, desaparecido gradualmente.