No início da pandemia da covid-19, especialistas acreditavam que a nova doença, assim como outras enfermidades respiratórias, atacava principalmente os pulmões. Com o tempo, descobriu-se que a infecção pelo Sars-CoV-2 causa danos em outros órgãos, como coração, rins e até o cérebro. Em análises recentes, pesquisadores encontraram indícios de efeitos também nos olhos. Eles detectaram a presença do RNA do coronavírus e algumas alterações oculares em pessoas infectadas. As investigações são preliminares, mas, segundo especialistas, também essenciais para guiar novos trabalhos científicos que ajudarão a desvendar os impactos do agente infeccioso na visão.
Pesquisadores sabem que algumas doenças virais respiratórias podem causar um problema ocular comum: a conjuntivite. Por isso, não houve surpresa quando surgiram pessoas com covid-19 e a inflamação nos
olhos. No entanto, pouco se sabia sobre a influência do novo coronavírus sobre a visão, o que motivou a realização de análises mais apuradas. “O envolvimento oftálmico em pacientes com essa enfermidade tem sido limitado, até agora, à conjuntivite. Não existem relatórios sobre a existência do Sars-CoV-2 no tecido intraocular. Isso nos motivou a analisar tecidos oculares de pessoas que morreram em decorrência da covid”, relata, em comunicado, Maria Casagrande, pesquisadora do Departamento de Oftalmologia da Universidade de Hamburg-Heppendorf (UKE), na Alemanha.
Casagrande e sua equipe analisaram os olhos de 14 pessoas e detectaram o RNA do agente infeccioso em três. “Nesse estudo, fornecemos, pela primeira vez, evidências de detecção do RNA do Sars-CoV-2 na retina humana. Em análises feitas anteriormente, a presença do vírus em tecidos oculares só ocorreu na conjuntiva (membrana mucosa que envolve a parte branca do olho) e nas lágrimas”, afirmam os autores do trabalho, publicado na revista especializada Ocular immunology and Inflamation.
Os investigadores acreditam que a presença do vírus justifica-se pela existência, no sistema ocular, da ACE2, uma proteína usada pelo patógeno para entrar no organismo. “A presença do receptor de entrada viral na retina de humanos e também de animais, como porcos e roedores, é algo conhecido na área médica e foi um dos motivos da nossa desconfiança inicial”, explicam.
A equipe acredita que os dados obtidos precisam ser aprofundados e abrem as portas para pesquisas que podem ajudar a entender o comportamento do Sars-CoV-2 no sistema ocular. “Devido aos riscos respiratório e cardíaco dessa enfermidade, a maioria das pesquisas foca nessas duas áreas, mas acreditamos que estudos em outros sistemas não devem ser ignorados”, destacam os autores. “Nosso estudo ainda é um piloto, um pontapé inicial para mais análises, até porque ainda não podemos afirmar que o vírus se replica na retina e em quais estruturas retinianas ele está”, ressalta Casagrande.
Novas perguntas
Um segundo estudo, feito por cientistas dos EUA, também encontrou indícios do RNA do vírus no sistema ocular. Nesse caso, a análise foi feita em material obtido de doadores de órgãos. Os cientistas analisaram a córnea de 33 pessoas e detectaram o RNA do coronavírus naquelas que testaram positivo para a infecção. O patógeno estava na córnea e no humor vítreo.
“Pelo que sabemos, nosso estudo é o primeiro a mostrar a presença do vírus na córnea. Mas ainda temos perguntas a responder. Não sabemos como ele chegou aos olhos e também não sabemos se ele se replica nesse local”, explicam os autores no artigo, liderado por Shahzad I Mian, da Universidade de Michigan. Os cientistas ressaltam que análises mais apuradas precisam ser feitas para esclarecer as dúvidas que surgiram. “Novos exames em pacientes que faleceram e também estudos in vitro poderão nos ajudar a compreender melhor o comportamento do vírus na córnea e em outras regiões oculares”, cogitam. Os resultados obtidos, até agora, estão em um artigo publicado no periódico MedRxiv.
Palavra de especialista
Uma doença sistêmica
“As primeiras manifestações documentadas do vírus Sars-CoV-2 foram as respiratórias, mas quando essa enfermidade surgiu, na China, um oftalmologista notou diversos casos de conjuntivite. Isso chamou a atenção dele, que definiu o aumento de casos do problema ocular como uma causa de uma doença desconhecida. Esses dados, que surgem após meses de pandemia e mostram a presença do vírus no olho e a possibilidade de quadros mais graves de enfermidades prévias, como o glaucoma, são exemplos do conteúdo que estamos aprendendo nesse longo caminho de manifestações clínicas da covid-19. Vemos todos os dias dados que reforçam como essa enfermidade é sistêmica. Ela causa danos em diferentes áreas, e os olhos são mais uma região que pode ser afetada. É importante continuar acompanhando e escrevendo esse capítulo. Isso vai nos ajudar a abrir ainda mais o leque de fatores usados para fazer o diagnóstico dessa doença e a entender como ela se apresenta clinicamente, o que nos ajudará durante o seu combate.”
David Urbaez, diretor científico da Sociedade de Infectologia do Distrito federal