Além de ser essencial para a sobrevivência dos seres vivos, a biodiversidade pode ser fonte de tratamentos contra o câncer. Uma série de substâncias encontradas no solo e em plantas, como bactérias e leveduras, tem mostrado efeito promissores, conforme mostram pesquisas brasileiras e internacionais. Os cientistas acreditam que há chances de essas moléculas serem base para o desenvolvimento de remédios contra diversos tipos de tumores. A aposta é que elas podem ser mais eficazes, baratas e seguras e ainda causar menos efeitos colaterais.
A Antártida é considerada um potente “laboratório” devido às características climáticas únicas. Lá, têm surgido algumas esperanças para o tratamento do câncer. “Consideramos essas regiões como ambientes extremos, pois eles sofrem uma pressão de seleção forte. O frio faz com que organismos desenvolvam vias metabólicas específicas ao longo do tempo, que são um material rico para ser estudado”, explica ao Correio Leonardo José da Silva, biólogo e pesquisador da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP).
Leonardo Silva e colegas realizaram estudos na Antártida em busca de moléculas anticancerígenas e selecionaram 17 bactérias desconhecidas em plantas da espécie Deschampsia antarctica. Dois desses micro-organismos foram analisados por Silva. Os testes mostram que eles produzem actinomicina V e cinerubina B, compostos que ajudam a inibir o desenvolvimento de tumores de mama, pulmão, rim e glioblastoma (cérebro). “É uma pesquisa ainda inicial, feita com células em laboratório, mas gerou resultados muito positivos”, diz o cientista, que publicou as descobertas na revista especializada Scientific Reports.
O biólogo acredita que, com financiamento, será possível chegar a resultados ainda melhores. “Eu só tive como analisar duas delas no meu doutorado, durante um ano. É um tempo curto, mas ainda temos 15 bactérias promissoras que podem ter o mesmo efeito. O problema é que precisamos de investimento”, enfatiza. “O câncer é um problema que atinge todas as populações o que faz dele um tema ainda mais importante de ser estudado. E isso inclui a busca por novos medicamentos.”
Rominne Freire, pesquisadora da USP, também encontrou na Antártida uma molécula promissora. Ela analisou 130 leveduras colhidas na região em busca de algo que produzisse uma enzima que é a matéria-prima do medicamento usado contra a leucemia linfoblástica aguda, câncer mais frequente em crianças. “Já tivemos problemas com o fornecimento de um medicamento dessa enfermidade porque ele é feito com a enzima L-asparaginase, que não é produzida no Brasil”, conta.
A levedura Leucosporidium muscorum gerou os resultados esperados. “Outros cientistas tentaram explorar o uso dessa enzima quando ela é gerada por bactérias, mas os resultados não foram positivos porque as bactérias são muito diferentes geneticamente dos humanos. Isso pode gerar problemas na resposta imune do paciente. Então, pensamos em avaliar leveduras, que são mais similares ao nosso organismo”, detalha. “Outros pesquisadores poderão, também, trabalhar com esse elemento e evoluir ainda mais. Já temos muitos medicamentos produzidos a partir dessas fontes, e há, no Brasil, outros recursos naturais que podem esconder esse potencial terapêutico.”
Uso popular
É esse o campo de aposta de cientistas também da USP. Em um estudo publicado na semana passada, eles relatam como encontraram duas substâncias com propriedades anticancerígenas na própolis vermelha, muito comum em Alagoas. “Em geral, ela é conhecida, há muitos anos, por apresentar ação bactericida e antifúngica. Mas, os estudos são recentes. Nunca se havia realizado uma investigação detalhada da ação anticancerígena”, conta Roberto Berlinck, professor do Instituto de Química da Universidade de São Carlos (IQSC) e um dos autores do trabalho, divulgado na revista especializada Journal of Natural Products.
Os cientistas encontraram oito substâncias desconhecidas no extrato. Em experimentos, observaram que duas conseguiram inibir o crescimento de células de câncer de mama, próstata, cérebro (glioma) e ovário, levando 50% delas à morte. A equipe compara o desempenho das duas substâncias com o da doxorrubicina, um quimioterápico. “Nos primeiros testes realizados in vitro, os compostos da própolis vermelha mostraram-se tão eficazes quanto o medicamento. No entanto, muitos anos de estudo ainda devem ser realizados para comprovar a ação dessas substâncias”, diz Berlinck.
Acesso ampliado
Allan Pereira, oncologista no Hospital Sírio-Libanês, em Brasília, e coordenador de oncologia no Hospital de Base de Brasília, explica que a área de estudos de substâncias naturais com poder de combate ao câncer cresce a cada dia. Segundo ele, a estratégia já resultou em tratamentos atualmente prescritos na oncologia. “Temos um medicamento fruto da casca de uma árvore. Ele se chama paclitaxel e é usado para quimioterapia em vários tipos de tumores”, exemplifica.
Para o médico, o surgimento de novas drogas também pode ampliar o acesso a terapias. “Ter mais opções de tratamento é muito bom porque impediria que as farmacêuticas ficassem com o direito de um único remédio. Esses medicamentos para câncer geralmente são bem caros. Então, uma variedade pode ajudar a reduzir os valores. A estratégia de usar uma substância sintética no lugar do composto natural também é muito boa, pois evita que o meio ambiente tenha prejuízos”, explica.
João Batista Fernandes, pró-reitor de pesquisa e coordenador do Laboratório de Síntese de Produtos Naturais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), também acredita que surgirão mais pesquisas e que elas poderão abrir as portas, inclusive, para tratamentos de outras enfermidades. “No nosso laboratório, trabalhamos com o gingerol, um composto do gengibre que mostrou alto poder de combate a células cancerígenas”, conta. Para ele, pela riqueza em biodiversidade, o Brasil tem muitas opções a serem exploradas nessa área. “Há muitos compostos que se mostram promissores na área de tratamentos médicos. No caso dos flavonoides, eles estão presentes em frutos como tangerina e laranja, recursos que temos em abundância. É claro que precisamos explorar essa biodiversidade, mas com todo cuidado, respeitando a natureza. É possível fazer as duas coisas.”