Desde o início da pandemia da covid-19, ficou claro que o vírus não afeta somente as vias respiratórias. Foram relatados impactos em praticamente todo o organismo: cérebro, coração, rins, sistema endócrino, entre outros. Recentemente, começaram a surgir dúvidas se o Sars-CoV-2 também pode agir no aparelho reprodutor de homens e mulheres, com consequências diretas sobre a fertilidade. Um artigo publicado na revista The Lancet, por pesquisadores chineses, sugere que o patógeno afeta a espermatogênese — processo no qual os espermatozoides são produzidos.
O estudo, financiado pelo governo chinês, baseia-se no resultado de duas pesquisas realizadas na Universidade de Ciência e Tecnologia de Huazhong. A primeira examinou amostras do tecido dos testículos e do epidídimo (ducto que armazena os espermatozoides produzidos nos testículos) de seis pacientes que morreram de covid-19 e de amostras do grupo de controle — um número igual de homens diagnosticados com câncer de próstata e que passaram por cirurgia. Na segunda parte, os cientistas compararam o sêmen de 23 internos do hospital, que tinham covid-19 leve a moderada, ao de 23 pessoas saudáveis.
A autópsia revelou o afinamento das camadas celulares que recobrem testículos e epidímios, além de edemas e exsudação de hemáceas — um sinal de que o organismo estava lutando contra um processo infeccioso local. Além disso, os cientistas detectaram um aumento da concentração de células do sistema imunológico e a presença de igG nos túbulos seminíferos, o local onde os espermatozoides são produzidos. O igG é um anticorpo fabricado em resposta à presença do Sars-CoV-2. Por último, nas amostras dos pacientes que morreram da covid-19, havia um alto índice de células germinativas destruídas, indicando que a espermatogênese sofreu danos.
Diferenças
Ao comparar o sêmen de pacientes com covid-19 e de homens sem a doença, os pesquisadores também detectaram diferenças. Em 39,1% das amostras do primeiro grupo, o número de espermatozoides era menor do que o normal e, em 60,9%, havia um aumento significativo de leucócitos, mais um indicativo de processo infeccioso local.
“Leucócitos e citocinas (substâncias inflamatórias produzidas pelo corpo) podem afetar a espermatogênese e interferir na fertilidade. Um aumento na concentração de leucócitos seminais pode causar anomalias no esperma. E foi observado que as citocinas podem afetar as funções das células de Sertoli (células somáticas contidas nos testículos), e seu nível alterado pode prejudicar a espermatogênese”, escreveram os autores do artigo.
“Até o momento, os impactos potenciais da infecção por Sars-CoV-2 na fertilidade masculina permanecem incertos. Com esse estudo, pretendemos preencher essa lacuna existente por meio dos resultados obtidos, que demonstraram a vulnerabilidade do aparelho reprodutor masculino em doentes internados com covid”, assinalou o artigo.
“Os resultados do estudo destacam a importância de uma avaliação crítica detalhada do efeito do Sars-CoV-2 em diferentes órgãos reprodutivos masculinos para fornecer uma base preliminar para estudos futuros”, concluíram os autores. Ele destacaram que mais pesquisas, com um número maior de pacientes, precisam ser feitas para confirmar os resultados.
Recentemente, uma meta-análise publicada por autores de diversas instituições de pesquisa, também da China, alertou que o Sars-CoV-2, as inflamações desencadeadas pela resposta imunológica, os medicamentos utilizados para combater a infecção e até os efeitos psicológicos da pandemia podem afetar a saúde sexual de homens e mulheres.
“Teoricamente, a infecção pelo novo coronavírus poderia levar à liberação de radicais livres e à fragmentação do DNA dos espermatozóides, bem como à diminuição da secreção de testosterona e à interrupção da formação de novos gametas”, afirmou Bruno Ramalho, ginecologista do Hospital Síro Libanês em Brasília e membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA).
Ele citou relatos de inflamação testicular associadas a outros coronavírus, o que abre possibilidade de danos imediatos ou de longo prazo na função reprodutiva. “Na prática, tudo isso ainda precisa ser comprovado”, ressaltou Ramalho.
“Claramente, ainda temos muito a aprender sobre a covid-19. Sua chegada é relativamente recente e ainda não existem dados definitivos que indiquem seu impacto na fertilidade masculina ou o potencial dos espermatozóides em servirem de vetores para a transmissão sexual desta doença”, concordou John Aitken, especialista em biologia reprodutiva na Universidade de New Castle, na Inglaterra, e autor de um artigo recente sobre o tema, publicado na revista Andrology.
Ele destacou, porém, que a presença do receptor viral ACE2 em células do sistema reprodutor masculino indica a necessidade de aprofundamento das pesquisas que estudam a associação entre o Sars-CoV-2 e a infertilidade. “A capacidade das células espermáticas de se fundir com o vírus sugere que devemos estar, ao menos, abertos a essa possibilidade”, concluiu.
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