Há bilhões de anos, o vizinho Vênus tinha clima e atmosfera semelhantes aos da Terra. Muito possivelmente, abrigava vida. Algumas delas, como bactérias anaeróbias, eram levadas para a atmosfera pelos ventos. Mas, então, o planeta tornou-se inóspito. Gases de efeito estufa subiram a temperatura para 460ºC, destruindo mesmo os micróbios mais resistentes. Lá em cima, porém, nas nuvens, uma colônia sobreviveu. E, por mais que também esse não seja um local dos mais viáveis, os micro-organismos continuam em atividade, tornando-se a primeira forma de vida já detectada fora da Terra.
Essas são hipóteses. Porém, extremamente prováveis, segundo um estudo divulgado, nesta segunda-feira (14/9), na revista Nature Astronomy (Leia Tira-dúvidas abaixo). Na mais importante descoberta astronômica desde a detecção das ondas gravitacionais, em 2015, um grupo internacional de cientistas anunciou a presença de uma molécula na atmosfera de Vênus, em proporções que, até onde se saiba, só poderia ser produzida pela atividade de bactérias que não necessitam de oxigênio.Trata-se da fosfina, composta por três átomos de hidrogênio e um de fósforo, também encontrada na atmosfera da Terra. Acredita-se que a molécula seja fabricada para repelir micro-organismos rivais ou possa ser apenas um resíduo.
Uma das formas de produção da fosfina é a atividade geológica, como vulcanismo. A única outra conhecida é o produto ou subproduto da atividade das bactérias anaeróbias. Porém, no primeiro caso, a quantidade de moléculas esperadas não chega a ser grande o suficiente como a que foi detectada nas nuvens de Vênus. Por isso, os cientistas acreditam ter confirmado uma hipótese debatida havia décadas e defendida pelo célebre astrônomo Carl Sagan, a de que existe vida ativa na atmosfera do planeta vizinho.
Em uma coletiva de imprensa transmitida pela internet, a astrobióloga da Universidade de Cardiff Jane Greaves, principal autora do estudo, contou que começou o projeto de pesquisa em 2016. Ela queria investigar bioassinaturas de fosfina na atmosfera de Vênus, em nuvens que ficam 50km acima da superfície. “Essas nuvens altas, embora muito ácidas, também são razoavelmente quentes, cerca de 20ºC, e também têm pressão, daí pensarmos que seria um habitat possível”, disse. Para confirmar essa dúvida, a equipe usou radiotelescópios, instrumentos que detectam indiretamente a presença de elementos químicos.
O primeiro radiotelescópio que fez a detecção foi o James Clerk Maxwell, no Havaí. Os átomos de moléculas absorvem a luz em comprimentos de onda muito específicos e únicos, e o equipamento indicou que havia uma lacuna no da fosfina. Isso queria dizer que a molécula estava presente, absorvendo luz quando passava pelas nuvens altas.
Checagem
Embora bastante empolgada, Greaves quis checar a descoberta. Por isso, a cientista britânica procurou a colega do Instituto Tecnológico de Massachusetts, nos EUA, Clara Sousa-Silva, cuja carreira é concentrada na caracterização da fosfina. A pesquisadora sempre acreditou que seria possível encontrar essa molécula em planetas distantes. “Eu estava pensando muito longe, e não no planeta literalmente mais próximo de nós”, confessa.
Os testes foram confirmados pelo observatório Alma, no Chile. O equipamento mostrou que o padrão observado pelo James Clerk Maxwell indicava a presença do gás da molécula, emitido das nuvens de Vênus.
Os pesquisadores, então, usaram um modelo da atmosfera venusiana, desenvolvido por Hideo Sagawa, da Universidade Kyoto Sangyo, para interpretar os dados. Eles descobriram que a fosfina em Vênus é um gás menor, existindo em uma concentração de cerca de 20 em cada bilhão de moléculas na atmosfera. Embora essa seja baixa, é muito maior que a produzida pela vida na Terra, e ainda mais elevada, comparado ao que se detecta na atmosfera.
A equipe modelou como a fosfina produzida por meio de atividades geológicas, como vulcanismo, poderia se acumular nas nuvens venusianas. Em todos os cenários, a quantidade da molécula equivaleria a apenas uma pequena fração do que as novas observações sugerem que está presente nas nuvens de Vênus. “Agora, astrônomos pensarão em todas as maneiras para justificar a produção não biológica da fosfina. Por favor, façam isso, porque estamos no fim de nossas possibilidades de mostrar processos abióticos que podem produzi-la”, diz Clara Sousa-Silva.
Os autores insistem que não podem afirmar com certeza que a atmosfera de Vênus abriga vida, e dizem que outras equipes deverão estudar a descoberta, para que encontrem novas explicações, ou acabem confirmando a hipótese. Para ter certeza, porém, somente uma visita ao planeta vizinho, onde sondas coletariam material e trariam para a Terra, algo que não está no calendário das agências espaciais, ao menos por enquanto.
“Se existe vida, de onde ela veio? Missões de naves espaciais mostraram que a superfície de Vênus já hospedou um oceano que se perdeu no passado distante. Talvez os micróbios pudessem ter encontrado um refúgio nas nuvens enquanto o oceano evaporava. Ou talvez tenham sido transportados para Vênus em meteoritos lançados da Terra ou de Marte — ou mesmo transportados para lá por nossas próprias sondas espaciais. Apenas as missões futuras poderão responder a essas perguntas”, diz Jonathan Lunine, pesquisador de astronomia da Universidade de Cornell, que não participou do estudo.