Há sete meses, pesquisadores chineses publicaram o sequenciamento genético do então chamado “novo” coronavírus. Em tão pouco tempo, a ciência descobriu o principal meio de acesso do micro-organismo às células hospedeiras — a proteína spike — e, com essa informação nas mãos, desenvolveu, em um esforço inédito na história da medicina, mais de 100 vacinas, sendo cinco delas em fase avançada. Entre acertos e erros, muito se aprendeu sobre medicamentos capazes de reduzir a severidade da covid-19, ao mesmo tempo em que foram descartadas drogas como a hidroxicloroquina, apontada, no início, como promissora.
Apesar de tanto progresso, à medida que são feitas descobertas cruciais para o combate à pior pandemia da história contemporânea desde a gripe espanhola, de 1918, surgem dúvidas com importantes implicações clínicas. Uma delas diz respeito à produção de imunidade contra o Sars-CoV-2. Dois estudos recentes publicados nas revistas Science e Nature e outro punhado de pesquisas menores, também divulgadas em periódicos científicos, demonstram que parte da população tem proteínas que reconhecem o causador da covid-19 sem jamais ter entrado em contato com ele. Ao mesmo tempo, ex-pacientes que testaram positivo para o Sars-CoV-2 não desenvolveram anticorpos.
Foi o que aconteceu com a servidora pública Ana Catarina Franco, 35 anos. Em junho, ela teve contato indireto com uma pessoa do trabalho do marido que estava infectada. Embora com sintomas — dor de cabeça e ameaça de dor de garganta —, por precaução, Ana Catarina fez o PCR, exame que detecta a presença do vírus. Tanto ela quanto o marido, também assintomático, testaram positivo. “Levei um susto, fiquei muito triste, achei que ia morrer. Foi um momento de muita tensão, preocupação com o futuro”, conta. Os dois isolaram-se completamente por duas semanas.
Em 13 de julho, a servidora fez o teste sorológico. “Fiquei decepcionada, não tinha anticorpos. Passar por tudo que passei e não dar reagente é a certeza de que posso pegar de novo. Não tenho imunidade. O médico me explicou que posso ter outro tipo de imunidade, mas tenho medo de me contaminar outra vez”, diz. Mesmo assintomática, Ana Catarina ficou com sequelas da doença: uma tomografia apontou que houve danos pulmonares e, hoje, ela sofre de bronquite. Os casos de pessoas que tiveram covid-19 e, depois, reapresentaram os sintomas da doença de forma mais grave assustam a servidora. “Se eu pegar de novo, será muito mais preocupante do que antes.”
Outros mecanismos
O infectologista Alexandre Cunha, vice-presidente da Sociedade de Infectologia do DF, diz que o organismo desenvolve outras maneiras de proteger quem foi exposto à doença. “Nem todas as pessoas desenvolvem anticorpos após a exposição (ao vírus) ou tomar vacinas. Isso acontece com outros agentes também. O organismo tem outros mecanismos para fazer a resposta imune”, explica o médico (Leia Duas perguntas para).
Uma dessas reações é a produção de um grupo de células de defesa chamadas T. Um dos primeiros estudos a constatarem o aumento na contagem dessas estruturas em pacientes curados da covid-19 foi publicado em maio, na revista Immunity, da Cell Press, por pesquisadores chineses. Analisando o perfil imunológico de 14 pessoas — oito haviam acabado de receber alta hospitalar e o restante estava em acompanhamento —, eles constataram tanto a elevação desse grupo celular quanto a de anticorpos específicos. A resposta, porém, não foi igual para todos.
Os cientistas avaliaram os níveis de anticorpos imunoglobulina M (IgM), que são os primeiros a aparecer em resposta a uma infecção, bem como os imunoglobulina G (IgG), os tipos mais comuns encontrados na circulação sanguínea. Os dois grupos apresentavam uma contagem superior dessas proteínas, comparados a pessoas saudáveis e sem contato prévio com o vírus. Porém, entre os que tiveram a doença, essa quantidade variou muito, assim como a de células T.
Quanto maior a quantidade de anticorpos, maior também a detecção desse grupo celular. Contudo, o tipo de célula T variou significativamente, sem explicação aparente. “Não está claro por que as respostas imunológicas variaram amplamente entre os pacientes. Isso pode estar relacionado à carga viral a qual eles foram expostos inicialmente, a seus estados físicos ou a sua microbiota”, observa um dos autores do estudo, Chen Dong, da Universidade Tsinghua, na China.
Exame complexo
“O ideal seria termos parâmetros no exame de sangue que poderiam identificar proteção ou imunidade ao vírus. Parece simples, mas é bem mais complicado do que parece”, diz Sarah Fortune, imunologista da Escola T.H. Chan de Saúde Pública de Harvard. O problema, ela explica, é que cada micro-organismo desencadeia um tipo de resposta imunológica diferente, e um mesmo patógeno também pode estimular tipos diversos de proteção. “As pessoas estão equiparando anticorpos à imunidade, mas o sistema imunológico é uma máquina maravilhosa. É muito mais complexo que apenas anticorpos sozinhos”, disse, à revista Nature, o virologista Andrés Finze, da Universidade de Montreal, no Canadá.
Mesmo componentes do sistema imunológico além dos anticorpos, porém, têm adicionado mais mistério à resposta do organismo ao Sars-CoV-2. Um estudo publicado no início de agosto na revista Science indicou que, mesmo sem jamais ter tido contato com o causador da covid-19, algumas pessoas têm células que o identificam. Isso poderia explicar mais um dos mistérios da doença: por que determinados indivíduos parecem mais resistentes ao vírus, seja não desenvolvendo a enfermidade, seja tendo sintomas mais brandos, ou, ainda, tornando-se assintomáticos mesmo com diagnóstico confirmado.