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ANIVERSÁRIO DE BRASÍLIA

Crônica: Sou, sim, candanga!

Assisti à queda de mais um mito: Brasília não era mais aquele lugar que ficava deserto nos fins de semana, porque os políticos voltavam aos seus estados. Agora, ela tinha sua própria identidade

Costuma-se dizer que o forasteiro que chega a Brasília achando que passará uma breve temporada e logo retornará à terra natal acaba fincando raízes e nunca mais deixa o Quadradinho. Quando desembarquei por aqui, no início dos anos 2000, sempre que ouvia essa teoria, gargalhava. Na minha cabeça, aquele seria um momento transitório, e o Recife, sim, era o meu lar. Passadas mais de duas décadas, recentemente, peguei-me repetindo a mesma frase para uma amiga recém-chegada à capital. Assim como eu, ela riu.

Retornando a março de 2001, minha chegada a Brasília foi, no mínimo, confusa. Era noite, e chovia forte, com trovoadas e ruas alagadas. Como assim? No imaginário de quem é de fora, nunca chove por essas bandas! (E aqui abro um parênteses: em pouco tempo, já fazia parte do clube dos que amam falar mal da seca, mas que ficam desesperados quando começa a chover sem parar). Na bagagem, trazia duas malas, a cabeça aberta para o futuro e o desafio de, pela primeira vez, viver uma vida a dois — que depois se tornou a três e, finalmente, a quatro.

De cara, fui apresentada ao Lago Paranoá. Um casal de amigos tinha um veleiro e nos introduziu, eu e meu marido, a esse universo da vela. Qual não foi nossa surpresa ao saber que Brasília, apesar de não ter mar, era detentora da terceira maior frota náutica do país. Entramos nas estatísticas. Compramos o nosso próprio barquinho e, da água, acompanhamos a construção da Ponte JK nos passeios de fim de semana.

Tive o privilégio de observar — mais que isso, participar — a transformação de uma jovem cidade, então quarentona. Segui o movimento de ocupação dos parques e das áreas públicas, como o Eixão do Lazer, onde meus filhos podiam correr livremente. Observei uma geração, agora formada por pessoas nascidas aqui, sentir orgulho de ser brasiliense. Assisti à queda de mais um mito: Brasília não era mais aquele lugar que ficava deserto nos fins de semana, porque os políticos voltavam aos seus estados. Agora, ela tinha sua própria identidade, que incluía, sim, ser o centro do poder, mas que ia muito além disso. 

Também vi o despertar de algumas mazelas comuns a grandes cidades brasileiras — escalada da desigualdade social, com mais pessoas em situação de rua espalhadas pelo Plano Piloto; aumento da violência urbana e do sentimento de insegurança; engarrafamentos dignos de uma cidade grande. Problemas que nós, jornalistas, acompanhamos de perto e com olhar atento.

Fui, também, passando por uma metamorfose, comum ao amadurecimento. Construí uma família, ganhei amigos que se tornaram irmãos, vivi muitas alegrias — e muitos perrengues. 

Com os enjoos da gravidez, o nascimento dos filhos e a necessidade de suprir os interesses sociais infantis, vendemos o nosso veleirinho, e acabei me afastando do lago por anos — logo ele, que tinha me acolhido de braços abertos quando cheguei aqui cheia de medos. Passada uma pandemia e superado um câncer de mama, o Paranoá voltou a ser o meu ponto de equilíbrio. 

Há três anos, comecei a praticar canoa havaiana, e as águas do Paranoá passaram a ser meu refúgio diário, o lugar onde busco energia para tentar manter a sanidade na correria do cotidiano. Que privilégio ter esse espaço tão democrático a nosso dispor. Que prazer desejar um bom -ia às pessoas que navegam em outras embarcações ou que margeiam o lago em corridas e passeios matinais. 

Que sorte a minha que a profecia repetida por tanta gente se concretizou. Hoje, grito aos quatro ventos, com muito orgulho, que sou, sim, candanga! 

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