
Com 10 feminicídios registrados até o momento, o Distrito Federal ultrapassa este ano o dobro de casos contabilizados no mesmo período de 2024, quando houve cinco ocorrências. O episódio mais recente foi no último sábado, quando Valdete Silva Barros foi morta pelo companheiro, José Ribamar Cunha Pereira, no Sol Nascente. A mulher foi encontrada sem vida e com ferimentos de faca no corpo. O autor fugiu do local e se apresentou na delegacia após mais de 24 horas, acompanhado de um advogado. Apesar de ter confessado o crime, Pereira foi liberado depois de prestar depoimento, o que causou comoção e revolta.
A Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) instaurou inquérito e pediu a prisão preventiva do autor. Agora, a polícia aguarda o Poder Judiciário emitir mandado de prisão. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) ainda não analisou esse pleito. "Conforme rito processual, o Tribunal do Júri de Ceilândia aguarda manifestação do Ministério Público", informou a Corte, em nota.
O Correio conversou com juristas, que explicaram o rito da lei e destacaram a importância da denúncia e da solicitação de medida protetiva em casos de violência contra a mulher. "A confissão, por si só, não leva automaticamente à prisão, especialmente se o crime não foi cometido em flagrante. Para que a pessoa seja mantida presa antes do julgamento, é necessário que o juiz decrete a prisão preventiva", explica Emanuela Barrosa, advogada especialista em direito da família e violência contra a mulher do escritório Barros e Constantino Advogadas. "Se o autor se apresentou voluntariamente e não houve flagrante, sem o pedido de prisão preventiva, a autoridade policial pode ouvi-lo, lavrar o depoimento e liberá-lo legalmente, mesmo com a confissão", completa.
Delegada aposentada da PCDF, doutora em direito e professora da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, Eneida Taquary enfatiza a importância de as mulheres fazerem uso das ferramentas da lei para se protegerem. "A questão mais grave em muitos eventos de feminicídio é a omissão da vítima em registrar a ocorrência criminal ou quando houve o registro de não solicitar as medidas protetivas de urgência ou comunicar a sua violação", comenta. "As mulheres estão se expondo indevidamente quando não exigem a medida protetiva ou quando dispensam a medida protetiva. Neste momento particular é que muitos feminicídios ocorrem. Os autores aproveitam as situações de vulnerabilidades das vítimas", alertou.
De acordo com a especialista, a fuga após o crime tem sido uma característica marcante na atuação dos autores de feminicídios. "Eles se escondem e depois se apresentam à autoridade policial, acompanhados de advogados para caracterizar a apresentação espontânea, após cessação da situação flagrancial, que resultaria na prisão. No Brasil, a confissão espontânea é uma circunstância atenuante. Isto é, diminui a pena do feminicida", detalha Eneida.
Saiba quem são as vítimas de 2025:
- 5 de janeiro: Ana Moura Virtuoso, Estrutural
- 15 de janeiro: Elaine da Silva, Planaltina
- 24 de fevereiro: Géssica Moreira de Sousa, Planaltina
- 26 de fevereiro: Ana Rosa Brandão, Cruzeiro
- 29 de março: Dayane Barbosa, Fercal
- 31 de março: Maria José Ferreira, Recanto das Emas
- 1º de abril: Marcela Rocha Alencar, Paranoá
- 8 de abril: Rosimeire Gomes Tavares, BR-040, altura de Santa Maria
- 9 de abril: Danúbia Mangueira de Santana, Park Way
- 19 de abril: Valdete Silva Barros, Sol Nascente
Soluções
Em 2024, o TJDFT registrou a média de 75 processos judiciais por dia relacionados à violência contra a mulher, totalizando 27.603 ações no ano. "A cultura machista no Distrito Federal se expressa de forma estrutural e cotidiana, influenciando comportamentos e práticas institucionais. Está presente em padrões sociais que naturalizam a desigualdade de gênero, desvalorizam a palavra das mulheres, impõem papéis fixos e legitimam o controle sobre seus corpos e decisões. Essas manifestações têm reflexo direto nos índices de violência", analisa a juíza de direito do TJDFT e mestra em políticas públicas, gênero e igualdade Rejane Suxberger.
De acordo com a magistrada, fatores como baixa renda, desemprego e desorganização social estão ligados a maiores índices de feminicídio. O Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam 2025), do Ministério das Mulheres, destaca que mulheres negras enfrentam sobreposição de vulnerabilidades e são as mais atingidas pela violência letal. O mesmo relatório aponta que a maioria das agressões ocorre no ambiente doméstico, o que evidencia a intersecção entre desigualdades econômicas, raciais e de gênero na perpetuação da violência. "Por isso, é essencial que as políticas públicas de enfrentamento ao feminicídio considerem essas dimensões e atuem de forma integrada para reduzir desigualdades e garantir proteção efetiva", pondera.
A educação é apontada por especialistas como um dos pilares da luta contra violência de gênero. O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) foi uma das organizações que apresentou o anteprojeto da Lei Maria da Penha. Nela, estão previstas ações educativas, culturais, de assistência social e saúde , medidas preventivas e repressivas da segurança pública, assistência judiciária.
"É preciso haver uma estratégia multidimensional para enfrentar tanta violência patriarcal, é muito importante a responsabilidade do poder público no desenvolvimento de políticas e no investimento de recursos orçamentários que as financiem", salienta Guacira Oliveira, integrante do Colegiado de Gestão do Cfemea Guacira Oliveira. "Uma parte conservadora, machista da sociedade tem autorizado os homens a violentar as mulheres e promovido a misoginia. O Estado e a sociedade têm de assumir a responsabilidade de enfrentar o problema para proteger a vida das mulheres", conclui.
Segurança
A Secretaria de Segurança Pública (SSP/DF) destacou, ao Correio, que a denúncia é o principal mecanismo para que os órgãos dessa área possam elaborar estratégias de atuação preventiva, identificar e prender autores.
Conforme a pasta, os feminicídios consumados no DF tiveram redução de 23,3% no ano passado, em relação ao anterior, quando foram registradas 23 mortes pelo crime de gênero. Em 2023, houve 30 vítimas.
A pasta afirma que o combate à violência contra a mulher é uma das prioridades do programa Segurança Integral, por meio do eixo Mulher Mais Segura, que concentra medidas preventivas e tecnologias voltadas à proteção e ao enfrentamento da violência contra a mulher, especialmente no âmbito doméstico e familiar. "Uma delas é o incentivo à denúncia como meio de interromper o ciclo de violência, permitindo que a rede de apoio possa agir de maneira mais eficiente. Isso ajuda a aumentar a notificação de casos, e a reduzir a subnotificação", explica a pasta.
Aproximadamente 1.100 pessoas são acompanhadas pelos programas de monitoramento e atendimento prioritário da SSP-DF. Vítimas e agressores são monitorados em tempo real, por meio do Dispositivo de Proteção à Pessoa (DPP) e do Viva-Flor. Esse último realiza o monitoramento após o acionamento da vítima e também funciona via aplicativo para atendimento prioritário do Centro de Operações da Polícia Militar (Copom Mulher). Desde 2018, mais de 3.600 pessoas foram assistidas.
De 2021 para cá, foram efetuadas mais de cem prisões de agressores monitorados pelos programas da SSP-DF por violação das medidas protetivas destinadas a vítimas assistidas por ambas as ferramentas. A principal diferença entre os dispositivos é que, no caso do DPP, o monitoramento da vítima é realizado simultaneamente com o uso do equipamento e da tornozeleira eletrônica pelo agressor. No Viva Flor, o acompanhamento é iniciado a partir do acionamento da pessoa protegida.
A Polícia Militar (PMDF) oferece o Policiamento de Prevenção Orientado à Violência Doméstica e Familiar (Provid). Em 2024, a PMDF realizou 25.062 visitas por meio dessa ação. Também é feito um trabalho de conscientização, para apoiar e encorajar as vítimas de violência doméstica na construção de fatores de proteção e redução dos riscos. A Polícia Civil (PCDF) conta com delegacias especiais de atendimento à mulher (Deam 1 e 2) e é possível que as vítimas registrem boletim de ocorrência por meio da Maria da Penha On-line, além de representar contra o autor da violência, enviar provas com fotos e vídeos, requerer a acolhimento, entre outros.
Três perguntas para
Rejane Suxberger, juíza de direito do TJDFT. Mestra em políticas públicas, gênero e igualdade
Quais são os caminhos para frear os feminicídios na capital?
Frear os feminicídios exige ação articulada, planejamento e continuidade. Fortalecer a rede de proteção é o primeiro passo: ampliar a presença e qualidade das Casas da Mulher Brasileira e CEAMs, principalmente nas regiões de maior vulnerabilidade. É preciso garantir que medidas protetivas sejam efetivas. O DPP é um bom exemplo, mas é necessário ampliar sua cobertura e rapidez de resposta. A prevenção começa na educação. Políticas escolares que promovam igualdade e desconstruam o machismo devem ser prioridade. A formação de profissionais das áreas de segurança, justiça, saúde e educação deve ser permanente. E, acima de tudo, é preciso tratar o enfrentamento ao feminicídio como política de Estado: com metas, recursos, monitoramento e sensibilidade para proteger a vida das mulheres no DF.
Os serviços de apoio às mulheres são acessíveis e adequados?
O DF avançou na estruturação da sua rede de apoio. A Casa da Mulher Brasileira, em Ceilândia, é exemplo de atendimento humanizado e integrado, com mais de 12 mil atendimentos em 2024. Também temos os CEAMs, que oferecem acolhimento e acompanhamento interdisciplinar. Mas a cobertura é desigual. Mulheres que estão em regiões administrativas isoladas ainda têm dificuldade de acesso. A construção de novas unidades da Casa da Mulher Brasileira é um passo importante, mas precisa ser acompanhada de investimento em qualidade de atendimento. A formação das equipes é essencial. Não basta ter estruturas físicas: é preciso que as mulheres encontrem escuta qualificada e acolhimento. A rede precisa ser sensível, preparada e presente onde as mulheres estão.
Quais são as principais dificuldades enfrentadas pelas vítimas ao buscar ajuda?
As barreiras são muitas. Emocionalmente, o medo, a culpa e a dependência do agressor dificultam a busca por ajuda. Do ponto de vista da informação, há desconhecimento sobre direitos e serviços. Como disse anteriormente, 62% conhecem pouco a Lei Maria da Penha e 71% desconhecem medidas protetivas. Institucionalmente, persistem casos de descrédito, burocracia e revitimização. A escuta despreparada afasta a mulher do sistema de proteção. A rede de apoio também é insuficiente em algumas regiões. O acesso a transporte e a continuidade do atendimento ainda são desafios. Superar essas barreiras exige uma rede eficiente, formação dos profissionais, informação acessível e mudança cultural que pare de responsabilizar a vítima.