
Por Jorge Henrique Cartaxo — jornalista e diretor de Relações Institucionais do IHG-DF; e Lenora Barbo — arquiteta e diretora do Centro de Documentação do IHG-DF
"É fácil compreender que, fechando essa brecha com uma obra de arte (...), forçosamente a água tornará ao seu lugar primitivo, e formará um lago em todos os sentidos." A observação do pouco lembrado Auguste Glaziou consta da sua carta encaminhada a Luiz Cruls, em 16 de novembro de 1894, definindo com precisão o lugar onde foi construída a barragem do Paranoá dando sentido e existência ao nosso lago. O que vale dizer, indicando o sítio do futuro Plano Piloto de Brasília.
Proclamada a República, a Constituição determina e o Congresso autoriza duas expedições ao Planalto Central sob a chefia de Cruls. A primeira em 1892, "Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil" para demarcar a área que abrigaria o futuro Distrito Federal; a segunda em 1894, "Comissão de Estudos da Nova Capital da União" para fixar, na área demarcada, o sitio destinado à nova capital do Brasil. É nesse segundo momento que o botânico francês Auguste Glaziou entra em cena emprestando raro talento, conhecimento e sensibilidade aos destinos da Nação brasileira.
Botânico autodidata, Glaziou chegou ao Rio de Janeiro em 1858, então com 30 anos de idade. Imigrante, sem recursos, o francês experimentou várias privações até ser notado pelo deputado F.J. Filho, encarregado por Dom Pedro II de conceber uma nova politica urbana para a cidade. Paisagista ágil e criativo e com uma experiência rica nos anos que trabalhou em Bordeaux, na França, rapidamente conquistou a inteligência refinada do Imperador. Em 1861 lhe coube a tarefa de restaurar o Passeio Público e, em 1869, a Direção dos Parques e Jardins da Casa Imperial. O reconhecimento e a notoriedade se fizeram presente em seguida: refazer os jardins da Quinta da Boa Vista, do Campo de Santana, do Parque São Clemente e do Palácio do Barão de Nova Friburgo, posteriormente Palácio do Catete, e tantos outros.
"No Segundo Império, situa-se um novo período com Glaziou, cuja presença se faz sentir até hoje por meio dos trabalhos que deixou, em que associou plantas importadas dos grandes cultivadores europeus(...) e plantas da flora nativa(...) A alameda das Sapucaias, na Quinta da Boa Vista, pela sua beleza intrínseca e capacidade de persistência no tempo, mereceu a admiração de sucessivas gerações. Glaziou é considerado, sem favor, o autor da mais importante obra paisagística de nosso país", disse Burle Marx que, como Glaziou, trouxe a sua arte para o embelezamento e à construção de Brasília.
Nos relatórios do Ministério da Agricultura encontramos a documentação de um intenso relacionamento de Glaziou com os jardins botânicos europeus e alguns outros em colônias francesas em latitudes tropicais. Na Quinta da Boa Vista funcionava a sede da Sociedade Brasileira de Aclimatação, que tinha Glaziou como membro, espécie de filial da homônima francesa sediada em Paris. Em 1889, como delegado do Rio de Janeiro, foi ele quem representou o Brasil na exposição Universal de Paris. No pavilhão do Brasil foram exibidas 96 plantas nativas, cujo exemplares expostos não saíram daqui, mas do Museu Nacional de História Natural de Paris.
Conhecido por seus projetos de jardins sinuosos, grutas e lagos artificiais, Glaziou não foi apenas o "jardineiro do Imperador Dom Pedro II". Ele trouxe grande contribuição para o estudo da botânica, como um intrépido naturalista que buscou em nossas matas, montanhas, restingas e cerrados os espécimes mais interessantes e ornamentais para semear nos jardins daqui e da Europa. Glaziou foi contemplado ainda com o título de Doutor em Filosofia, em 1868, pela Academia Imperial Alemã.
Os relatórios das duas expedições, conhecidas como Comissão Cruls, nunca perderam a sua distinção como trabalho notável de compreensão e descrição do Planalto Central onde deveria e foi construída a nova capital do Brasil. Nas preciosas anotações e relatório do botânico Auguste Glaziou e em todos os estudos subsequentes até o emblemático Sitio Castanho eleito pela Comissão do Marechal José Pessoa, o lago Paranoá sempre esteve ali, como referência e lugar.
Não por acaso iniciamos esse texto, citando a frase de Auguste Glaziou. Certamente, Lucio Costa ao pensar e conceituar Brasília em sua Memória Descritiva do Plano Piloto, de 1957, já sabia que a nossa capital seria abraçada por um lindo lago, resultando numa cidade que "é, ao mesmo tempo, derramada e concisa, bucólica e urbana, lírica e funcional".