PodEnvelhecer

"Envelhecer no Brasil é um desafio", afirma a geriatra Aline Laginestra

Configuração etária do país muda em ritmo acelerado, mas adaptações para novo perfil populacional deixam a desejar. No DF, violência contra idosos é o que mais preocupa, avalia a geriatra Aline Laginestra. Correio lança podcast para discutir temática

A geriatra Aline Laginestra participou do primeiro episódio do podcast PodEnvelhecer, com as jornalistas Sibele Negromonte e Carmen Souza -  (crédito: Reprodução)
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A geriatra Aline Laginestra participou do primeiro episódio do podcast PodEnvelhecer, com as jornalistas Sibele Negromonte e Carmen Souza - (crédito: Reprodução)

"Não dá para decidir o que fazer na hora que você chega lá", alerta a geriatra Aline Laginestra ao falar sobre os cuidados a serem tomados ao longo do envelhecimento. Um entendimento que vale para as pessoas e para as cidades, mas que parece ainda não ter vingado no Brasil. Mesmo passando por um processo de envelhecimento acelerado, o país "deixa a desejar" em processos estruturais para a garantia de uma velhice saudável, como a reestruturação dos serviços de saúde, das relações de trabalho, lazer e cultura, avalia a também professora de medicina da Universidade Católica de Brasília. 

No caso de Brasília, Laginestra considera que há um cenário promissor, com a população que passou dos 60 com maior qualidade de vida e mais acesso a serviços de suporte. Os casos de agressões aos idosos, porém, sobretudo por parte de parentes e familiares, despertam preocupação. "Vejo muito menos frequência de doenças infectocontagiosas ou de uma vulnerabilidade social do que em outras cidades. Mas também vejo muita questão de violência em relação ao idoso. Justamente por uma dependência financeira", diz.

Ao completar 65 anos, a capital caminha para ser a unidade da Federação com a população mais idosa do Brasil — chegará à condição em menos de 50 anos, segundo estimativas do Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF). Estar atento às especificidades da velhice é regra de ouro para trilhar bem esse processo, sugere Laginestra.

A professora da UCB é a entrevistada da estreia do PodEnvelhecer, podcast criado pelo Correio para discutir a desafiante transformação etária por qual passa Brasília e o resto do país. Confira os principais trechos do episódio de estreia.

O Brasil, um país reconhecidamente jovem, de repente está envelhecendo em um ritmo muito acelerado. Estamos preparados para isso?

Os países mais velhos que conhecemos, como os da Europa, o Japão, tiveram tempo para envelhecer. E nós, dadas as condições globais, o acesso amplo à informação, a queda da natalidade cada vez maior, estamos nos tornando um país velho, mas muito rápido, sem passar pelos processos de estruturação que conhecemos em outros países. É um desafio você ter ainda pessoas muito jovens, mas também estar convivendo com velhos cada vez mais velhos, sem que se tenha uma adaptação cultural, social, de instituições, de saúde, de expectativas, de mentalidade, de crenças de que você realmente chegou lá. Envelhecer no Brasil é um desafio, porque a gente tem uma convivência e um choque de gerações, uma necessidade cada vez maior desse indivíduo que envelhece, inclusive de mudanças pessoais, íntimas e das próprias questões mentais.

Brasília é uma cidade com suas especificidades, inclusive com um número significativo de idosos. Quais as suas percepções sobre esse fenômeno na capital do país?  

Aqui, a gente já vê pessoas mais velhas e que têm condições financeiras melhores. E vê uma inversão social bem interessante: filhos que não saem da casa dos pais por conta dos salários desses idosos. Isso tem criado alguns vieses, inclusive com impacto social, familiar. Escuto de pacientes: "doutora, não posso morrer porque tenho meu filho, meu neto, que dependem de mim financeiramente". Eu não sei se é um padrão de construção social, porque a gente tem aqui muitos funcionários públicos, pessoas com uma renda fixa garantida, a maior renda per capita do país. O fato é que vejo o sofrimento dos idosos nesse quesito. Mas, por outro lado, vejo também uma qualidade de vida melhor. No DF, eles têm bastante acesso a vários aspectos da saúde, inclusive são pessoas que têm uma educação muito melhor, têm alcançado degraus mais modernos, usam as mídias sociais. Estão mais participativos, frequentam o meio social.

Somos um país desigual, e não é diferente aqui no DF. Como isso se revela em relação à velhice?

Um microcosmo dessa desigualdade a gente vê muito na periferia, mas, aqui no DF, essas pessoas têm mais acesso a tratamento, saúde, cuidados e programas de governo. É muito difícil você ver uma situação, até mesmo na periferia, que ele não possa comprar nenhum remédio ou que não possa se alimentar melhor, ou que não tenha condições mínimas sanitárias dentro de casa. Eu vejo muito menos frequência de doenças infectocontagiosas ou de uma vulnerabilidade social do que em outras cidades. Mas também vejo muita questão de violência em relação ao idoso. Justamente por essa dependência financeira.

Também somos uma sociedade, o Brasil, nesse caso, ainda muito preconceituosa com o envelhecer. Esse seria um dos principais desafios?

Eu sempre falo que envelhecer é rede, e é uma rede constituída desde a sua jovialidade. Envolve todas as suas áreas da vida, não é só o seu corpo, seus aspectos biológicos, mas tem, principalmente, relevância social, seus relacionamentos, a sua espiritualidade, sua religiosidade, a forma como você vê o mundo, a sua capacidade intelectiva, de aprender, de crescer, de se transformar, a sua resiliência, a sua capacidade de vivenciar as mudanças, que são físicas, biológicas, mentais. Não dá para decidir o que fazer na hora que você chega lá. Existe uma máxima no envelhecimento, que é: o envelhecimento é heterogêneo, não é igual para todo mundo. Não existe uma fórmula igual para todo mundo. Então, eu vou envelhecer diferente de você, você vai envelhecer diferente daquela outra pessoa, do seu amigo, etc. Porque envolve essa série de fatores, que são muito individuais. Pensar nisso é muito importante porque você, sim, pode ser o senhor do seu processo de envelhecimento, e envelhecer de uma forma muito melhor. 

Nesse processo, existe também a responsabilidade do Estado. De que forma ele precisa se preparar para oferecer suporte a essa população que envelhece de forma diferente?

O Estado tem que ver esse processo como natural. No âmbito da saúde, primeiro, fomentando educação em saúde, que é uma carência muito grande que temos. A gente ainda tem uma influência muito grande de vícios, e ainda temos os vícios adquiridos na própria velhice, por aspectos inerentes, como solidão, tristeza, maior risco de depressão, dificuldades de relacionamento. Com isso, você envereda mais para o alcoolismo, por exemplo. O Estado tem que se organizar para isso. Mas ainda há muito a desejar, porque você tem uma assistência, em termos de instituições de saúde, que é muito hospitalocêntrica — quer dizer, uma medicina de agudos, você age muito menos em prevenção e reabilitação do que em tratamento da doença aguda. Carece também um pouco mais de acesso à implementação de novas habilidades, novos empregos, lazer, aspectos que vão atrair esse público-alvo ou que vão melhorar condições culturais ao longo da vida. 

Você falou que o envelhecer é algo individualizado, mas existe uma diretriz básica para envelhecer bem?

Sim, tem muitas regras de ouro. A principal é você ter um corpo ativo. Dentro da medicina, a gente volta para o conceito de Hipócrates: primum non nocere — primeiro não lesar, primeiro não faça besteira, tente se livrar de vícios, das coisas que vão te jogar para baixo. Não só de vícios como cigarro, bebida alcoólica, excesso de comidas industrializadas, mas também os vícios mentais, que vão te consumir e dificultar seus relacionamentos, dificultar suas crenças. A primeira coisa é se avalie, tente ser uma pessoa mais ativa, não cometa excessos, tente levar uma vida de equilíbrio. A virtude está no meio, filosoficamente falando, comece daí: atividade física, uma boa alimentação, ausência de vícios, bons relacionamentos. Inclua uma coisa que as pessoas esquecem muito: a religiosidade, a espiritualidade. Nós, como seres eminentemente materiais, biológicos, já falimos. Você já começou em falência, porque sabe que seu corpo vai perecer, você vai num contínuo de envelhecimento, vai chegar até um extremo e vai se defrontar ali com a sua finitude. Por isso, você tem que ver além da materialidade. As pessoas mais espiritualizadas, que têm outras crenças além da vida material, envelhecem muito melhor. 

Há ainda a nossa dificuldade em falar da velhice. Por quê? 

Primeiro, vem da apresentação estética. Desde a Grécia Antiga, o belo é valorizado. Talvez, mude um pouco o padrão de beleza, mas sempre o belo é almejado, em toda a história da humanidade. E, de repente, você passa por uma condição natural, em que vai ficar com a pele mais flácida, vai criar uma barriguinha, vai mudar o seu perfil físico. A gente tenta criar barreiras a algo que nos leve à morte, por exemplo. Na nossa cultura é quase absurdo falar em câncer, tanto que, dentro da medicina, a gente usa uns termos que vão subverter isso. A mesma coisa, o velho. Chega quase a ser um xingamento, a pessoa não pode ouvir a palavra. Essa dificuldade talvez esteja relacionada a uma resistência dos profissionais em se especializar. Se o mundo está envelhecendo, temos que nos adaptar também ao processo de envelhecimento. Mas você vê que até nisso tem etarismo. No DF, por exemplo, somos poucos geriatras. Aí você pensa, por que não tem mais? E eu digo que é etarismo, porque cria-se a medicina da longevidade, cria-se anti-age, coisas que não existem, nunca existiram. 

E as pessoas buscam isso incessantemente… 

Eu sinto muito por aquela pessoa que toma soro não sei do quê, que toma tratamento na veia. Sinto muito porque ela não só vai envelhecer, como está sendo enganada, porque estão te dando uma ilusão de uma vida longeva, ativa, maravilhosa e jovem que nunca vai existir. É muito mais fácil a gente aceitar, viver da melhor forma possível, o que não é igual a adoecer.

 

 


postado em 20/04/2025 07:00