ANIVERSÁRIO DE BRASÍLIA

Crônica: Até hoje a aventura continua

Reinventar-se em Brasília, a capital sonhada, projetada, construída com esforço épico foi uma aventura interior

Brasília 65 anos -  (crédito: Maurenilson Freire)
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Brasília 65 anos - (crédito: Maurenilson Freire)

Por Maria Lúcia Verdi - Possuir uma cidade, dizer "a minha" não é nada simples. Cheguei de Porto Alegre em 1971, numa cidade vermelha, nua, vestida de pó e sonho, e foi um susto. Tudo diverso do conhecido, os espaços me deixando tonta, o silêncio e o vazio me desafiando. Para trás haviam ficado avós, tios, primos, colegas de escola, namoradinho.

Reinventar-se em Brasília, a capital sonhada, projetada, construída com esforço épico foi uma aventura interior. Lembro da revolta provocada com a instalação do primeiro semáforo na cidade, sacrilégio contra o projeto de Lucio Costa... Até hoje essa aventura continua, os espaços e o silêncio ainda me desafiam, apesar das modificações urbanas e da quantidade de veículos.

A cidade em construção começou a me conquistar pelo céu, a abertura do horizonte e isso continua. Hoje, o jardim em que se transformou a cidade é tão importante quanto o céu — árvores, plantas e flores, abraçando-nos tanto quanto a imensidão. São "coisas" das quais sinto falta visceral quando me afasto por mais tempo.

Os prédios escultóricos de Niemeyer foram e são outros elementos de sedução. Reportavam-me a outras dimensões um outro barroco, um simbolismo futurista, algo que não sabia nem queria saber nomear, deixando-me apenas encantar com esculturas à céu aberto. Naqueles primeiros tempos, outro fator de enraizamento foram os espaços culturais e os encontros com os amigos no Teatro Nacional, na Escola Parque, nas sessões de cinema na Cultura Inglesa, um pouco depois os concertos Cabeças, as peças do Hugo Rodas... Éramos poucos, vivíamos a ditadura do melhor modo possível, com cinema, música, teatro, debates, ainda no ritmo do sex, drugs and rock and roll dos anos sessenta...

A minha Brasília de hoje é outra, somos todos outros e tantos que foram referência já não estão. Wladimir Carvalho é a sala de cinema do Brasília; Hugo Rodas uma sala de teatro na icônica 508, agora Espaço Cultural Renato Russo; a Ponte Honestino Guimarães resiste. As poderosas construtoras colocam mais e mais prédios em espaços livres nas superquadras, arquiteturas frequentemente questionáveis — estamos em Brasília ou num desfile ostentador que contrasta com os puxadinhos das áreas comerciais?

Mas é aqui onde decidi me fixar após a aposentadoria, depois de quase vinte anos fora do país. E por quê? Filha e neto são a primeira resposta, porém há mais. Há essa necessidade do espaço aberto que ainda existe, esse horizonte afinal inconquistável, o desejo de voo que a cidade afirma, ecoando pergunta interminável quando me perco nos amanheceres e nos pores do sol. Num poema antigo, no qual a cidade fala, escrevi: "Não busquei meu cenário. Meus labirintos são outros. Pássaro baixei à terra. Como domesticar-me? "

Sonho que Brasília resista à domesticação, à vulgarização e que, assim como o país da qual é o emblema, consiga lutar contra as vozes nacionais e internacionais que a tudo intencionam transformar em mercadoria. Ainda, no citado poema: "Ouço sem tréguas, vejo sem descanso Ecos da dor em meu planalto.(...) Eu, matéria imaginária, centro separo decido discuto divido. Esta lógica não me pertence. Eu, a cidade impossível, habitante de todos os homens. Travestida".

Que a cidade não perca a capacidade de nos assombrar com a beleza, de simbolizar um Brasil mais unido, em busca de alguma justiça social. Que não perca a aura que a diferenciou de todas, entusiasmando o mundo. Aqui temos nossa descendência hoje à sombra de um futuro assustador, o Cerrado ameaçado, todos os biomas em perigo, os povos que os protegem também. Isto é quase uma reza e não sou religiosa — que os legisladores acordem. Brasília e o Brasil merecem uma outra realidade.

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Por Opinião
postado em 21/04/2025 04:24