
Por Nicolas Behr — A arte é que vai dissociar Brasília da ideia de poder. Estigmatizada, nossa cidade carrega a mácula de ter sido capital antes de ser cidade. Sim, nossa relação com o poder é, portanto, umbilical, e disso não temos como fugir. Quando se pensa em Paris, lembra-se do Louvre; em Roma, do Vaticano; em Atenas, da Acrópole; em Madrid, do Museu do Prado; em Londres, do Museu Britânico; em Lisboa, do Mosteiro dos Jerônimos, e assim por diante.
Anos atrás, numa cidade nordestina, ao final de uma oficina de poesia, fui abordado por um presente: você é da terra do Renato Russo!!! Ops... uma nova referência para a nossa cidade. Renato como habitante de Braxília, essa cidade-além-da-utopia. Não-capital. Não-poder. O processo de dissociar Brasília da ideia de poder (insisto) já começou e vai levar séculos.
As grandes capitais do mundo começaram como aldeias. Nós começamos fruto de canetadas e decretos. Somos o maior museu de arte moderna a céu aberto do mundo. Mas isso ainda não sabemos. E aí vem o poder para fazer sombra à essa beleza incomparável. Felizmente fomos reconhecidos pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade, senão o Plano Piloto já teria se tornado em uma Águas Claras com asas. Águas Claras é a anti-Plano Piloto por excelência. Mas ser Patrimônio Cultural da Humanidade tem seu preço: os brasilienses querem o bônus, sem querer pagar pelo ônus de ser uma cidade tombada, protegida, com restrições que a indústria imobiliária (veja o mais recente PPCUB) insiste em ignorar.
Brasília, quando foi construída, representou a capacidade criativa do povo brasileiro. E o mundo nos invejou, maldizendo Brasília com cidade-maquete por ter sido construída em um, então, país em desenvolvimento. E foram operários mal treinados, vindos de áreas rurais, os heroicos candangos, que ergueram este monumento vivo, simbolizando a nossa ousadia. Infelizmente essa ousadia burocratizou-se. Hora de resgatar a coragem de propor soluções efetivas, por exemplo, para a crise no nosso sistema de transporte público, que dá um outro nome a Brasília: Cidade do Automóvel. Voltando à questão da arte como forma de dissociação de Brasília e o poder.
A arte quebra a lógica racional e muitas vezes autoritária que marca a imagem da nossa cidade no inconsciente coletivo nacional. Os festivais, os coletivos independentes, os eventos colaborativos, na maioria das vezes à margem das instituições oficiais, questionam a ordem espacial e social ditada pelo poder. A arte desloca o olhar do espectador para intervenções urbanas, abre rachaduras no concreto das narrativas oficiais, por onde passa a poesia, a música, o gesto, a forma... A arte ocupa a cidade de forma criativa, resignifica-a, revelando uma nova cartografia por meio da arte urbana, reinvindicando nosso direito à cidade. Resumindo, a arte é uma linguagem que escapa ao controle oficial, revelando uma cidade-capital contraditória, múltipla, caleidoscópica.
Queremos uma cidade de afetos, e não de setores. Tudo bem, Brasília também é poder. Mesmo que não a mereça. Fruto da generosidade de seus fundadores, Brasília foi pensada como uma cidade socialista fundada em um pais capitalista. O resultado: a cidade brasileira com maior desigualdade social. Com maior renda per capita do pais e também com índices de pobreza que ultrapassam a indignação, iceberg exposto do nosso fracasso enquanto sociedade que se quer cristã, igualitária e justa.
Ainda temos um longo e doloroso caminho a percorrer. Já começamos a caminhada.