Ponto a ponto

Por uma comunicação mais inclusiva: livro aborda a comunicação antirracista

Midiã Noelle, entrevistada do Podcast do Correio desta quarta-feira (02/4), lançou em Brasília o livro Comunicação Antirracista: um guia para se comunicar com todas as pessoas, em todos os lugares. Para ela, é preciso discutir a estrutura da sociedade

 02/04/2025. Ed Alves CB/DA Press. Cidades. Podcast recebe Midia Noelle - Consultura e Pesquisadora da Unesco.  -  (crédito: Ed Alves CB/DA Press.)
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02/04/2025. Ed Alves CB/DA Press. Cidades. Podcast recebe Midia Noelle - Consultura e Pesquisadora da Unesco. - (crédito: Ed Alves CB/DA Press.)

A jornalista e pesquisadora Midiã Noelle foi a convidada desta quarta-feira do Podcast do Correio. Ela é autora do livro Comunicação Antirracista: um guia para se comunicar com todas as pessoas, em todos os lugares, lançado ontem, em Brasília. Às jornalistas Rosane Garcia e Adriana Bernades, Midiã falou sobre a forma como a educação racial pode ser abordada pela sociedade e trouxe reflexões e práticas para construir uma comunicação mais inclusiva e livre de preconceitos. Confira, a seguir, os principais pontos do podcast.

Legado

O livro, dividido em oito capítulos, é indicado para qualquer pessoa a partir da adolescência. O primeiro capítulo aborda a comunicação como um legado familiar inspirado na minha vivência. Meu pai e minha mãe eram cinegrafistas e fotógrafos. Então, cresci com pessoas fazendo revelação de filmes em casa e a comunicação se apresentou como algo bastante familiar. 

Costumo dizer que, entender o racismo é um caminho sem volta. Eu me lembro que quando comecei na produção do Jornal Correio (Bahia) fazia um relatório para minha editora para distribuir as pautas durante o dia. A  gente celebrava casos absurdos de violência como chacinas, e muitos desses casos eram com pessoas negras e de bairros que eu morei. Quando celebramos, naturalizamos esses casos absurdos no dia a dia. Eu não conseguia entender essa naturalização porque não tinha noção do que era o racismo. À medida que fui conhecendo movimentos sociais e fui lendo (escritoras) mulheres negras passei a entender mais o racismo. Foi um caminho sem volta.  

É necessário que as pessoas brancas façam um autoestudo. Já que não conseguem escutar a gente, talvez consigam escutar os brancos que estão interessados na pauta. Quando pessoas brancas que são  antirracistas existem, e elas pesquisam e conversam com sua população, aí a mudança pode ser mais possível.

Comunicação

A comunicação antirracista tem que ser antipunitivista, antiproibicionista e anticapacista. Por exemplo, quando a pauta é anticapacitista, pessoas negras portadoras de deficiência são ignoradas. Não falam sobre uma pessoa negra "cadeirante" que mora em uma favela, que não tem acesso à sua casa a não ser que seja carregado. Outro exemplo é um profissional de segurança que pode julgar uma pessoa negra que esteja passando por alguma crise neurodivergente e julgar a pessoa como usuária de substâncias psicoativas. 

É importante mostrar as pessoas negras pelas lentes das possibilidades e não somente pela lente da estigmatização e da marginalização. Até por isso, também sou a favor do abolicionismo penal, ou seja, sou a favor de que as pessoas não sejam presas por conta do uso de substâncias. O Brasil está melhorando um pouco as políticas sobre drogas. Não tem como pensar e enfrentar o racismo sem pensar em parar de naturalizar os sistemas penais, que prendem, em maioria, homens negros e pardos. Não tem como fazer uma comunicação antirracista querendo que se prenda mais gente.

Temos de entender que todo mundo tem lugar de fala a partir da sua realidade e da sua vivência. A forma como esse termo se popularizou não é de fato como a autora Djamila Ribeiro definiu. Há uma diferença entre representatividade e lugar de fala. A gente tem o discurso a partir da observação e das estruturas que impactam mulheres negras na fala, mas não significa que uma mulher branca me representa. Uma mulher branca vai me representar enquanto mulher.

Reflexão

É necessário fazer uma reflexão e lembrar que há 140 anos, duas ou três gerações passadas, as pessoas negras eram vistas, no Brasil, como coisas, como objetos. Foram quase 400 anos de escravidão, de comercialização e de deslegitimação da população negra. Para construir uma sociedade antirraccista não basta apenas construir políticas públicas, é necessário que elas sejam efetivadas. Por exemplo, a Lei n° 10.639 (que torna obrigatório o ensino da História e da Cultura Afro-brasileira na Educação) e a  Lei n° 11.645 (que torna obrigatório o ensino da História da Cultura Afro-Indígena) não são efetivadas porque o racismo institucional é uma realidade.

Uma sociedade como a nossa, que é forjada no racismo, só vai ver uma mudança a partir da comunicação e de um processo de reconhecimento das semelhanças com o outro. Somente quando as pessoas tomarem a pauta para si vão reconhecer a importância dessa luta. Nada justifica que essas leis não sejam efetivas nas escolas mesmo tendo, à disposição, vários materiais produzidos sobre o assunto. Isso representa a perpetuação do racismo institucionalizado.

Tem um exemplo de um jornal na Bahia que noticiou a prisão de uma pessoa por venda de maconha em um bairro nobre (Corredor da Vitória) como "Empresário é preso por venda de maconha líquida". Para esse jornal, ele não é um traficante porque não vendeu em um território estigmatizado. Não estou julgando o que ele estava fazendo, porque sou uma pessoa antiproibicionista. O que eu trago aqui é a forma como o jornal trouxe esse caso. Se fosse um rapaz de uma "quebrada" ou de uma favela, será que ela seria um traficante ou um empresário para esse jornal? Com certeza seria traficante. 

Estigmas

A pobreza não gera violência, ela só passou a gerar violência quando atribuíram a pobreza ao povo negro. No Brasil, os negros não eram pobres, eles eram escravizados, eram tratados como objeto e não como cidadãos. E a pobreza passa a ser associada à população negra quando ela deixa de ser escravizada e é jogada à rua no 14 de maio, no pós-abolição. Eu costumo dizer que os imigrantes são os primeiros cotistas do Brasil. Eles chegaram ao país recebendo terras, condições de trabalho, continuaram com seus nomes e com as famílias. Eles tiveram investimentos sociais para construir suas vidas.

Recentemente a família do (ator) Bruno Gagliasso teve a filha atacada de forma racista por uma mulher em Portugal. Uma advogada negra entrou no caso e conseguiu que a mulher fosse condenada. Esse é um dos casos que só tem reconhecimento porque tem uma pessoa branca e famosa envolvida. O racismo é crime, isso é um fato. Isso tem que ser evidenciado, porque as pessoas, inclusive, nas plataformas digitais, podem disseminar muito ódio racial. Eu acho a lógica da prisão muito desumana, por isso apoio as leis alternativas. Mas por que as pessoas que cometem esse crime de ódio também não são presas?

Teve um caso de um funcionário público que foi acusado de racismo reverso. Isso é uma loucura. Não existe racismo reverso por causa do processo que o Brasil sofreu. Para ter racismo reverso no Brasil, a gente tinha que voltar no tempo e escravizar pessoas brancas. Não tem como a gente dizer que pessoas brancas sofrem racismo. E nem temos como dizer que pessoas negras cometem racismo. 

*Estagiário sob a supervisão de Eduardo Pinho

 

Ficha técnica

Comunicação Antirracista: um guia para se comunicar com todas as pessoas, em todos os lugares

Autora: Midiã Noelle

ISBN: 978-85-422-3192-2

Páginas: 192 p.

Preço livro físico: R$ 56,90

Editora Planeta

  • Comunicação Antirracista: um guia para se comunicar com todas as pessoas, em todos os lugares
Autora: Midiã Noelle
ISBN: 978-85-422-3192-2
Páginas: 192 p.
Preço livro físico: R$ 56,90
Editora Planeta
    Comunicação Antirracista: um guia para se comunicar com todas as pessoas, em todos os lugares Autora: Midiã Noelle ISBN: 978-85-422-3192-2 Páginas: 192 p. Preço livro físico: R$ 56,90 Editora Planeta Foto: Material cedido ao Correio
  • pri-2602-opiniao Opinião Racismo
    pri-2602-opiniao Opinião Racismo Foto: Caio Gomez
  • Em 2023, foram registradas 722 ocorrências de injúria racial no Distrito Federal, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP/DF)
    Em 2023, foram registradas 722 ocorrências de injúria racial no Distrito Federal, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP/DF) Foto: Caio Gomez

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postado em 03/04/2025 04:00