JUSTIÇA

Caso do assassino de Louise expõe frustração com reincidência de criminosos

A metáfora "enxuga gelo" atribuída às polícias é polêmica e escancara um problema que vai além de prisões e solturas. Envolve as leis do país e o sentimento de frustração da sociedade

PRI-1603-PRISOES -  (crédito: Maurenilson Freire)
x
PRI-1603-PRISOES - (crédito: Maurenilson Freire)

Assassino confesso da estudante Louise Maria da Silva Ribeiro em 2016, na Universidade de Brasília (UnB), Vinícius Neres Ribeiro estava em regime semiaberto, mas fugiu do Centro de Progressão Penitenciária (CPP). Nos dias em que esteve foragido, tentou matar uma ex-namorada e foi preso pelos policiais penais. Mesmo com extensa ficha criminal e considerado perigoso, Vinícius passou por audiência de custódia, na qual o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) solicitou a liberdade provisória, com imposição de medidas cautelares, como o uso de tornozeleira eletrônica, situação que diverge até mesmo do protocolo do regime. No entanto, ele retornou à Papuda. O pedido do MP desencadeou um sentimento de frustração e angústia à sociedade: prisões que parecem mais simbólicas do que efetivas.

Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular

Somente por ter fugido do sistema prisional, o preso perde, automaticamente, o benefício do semiaberto e volta para a Papuda. Além disso, sofre uma falta grave e, por quase um ano, não tem direito ao saidão, a trabalho externo ou à saidinha. Na ocasião, o MP informou que, a respeito da audiência de custódia de Vinícius, a sua manifestação limitou-se apenas à prisão em flagrante. "O órgão já havia se manifestado favoravelmente ao mandado de prisão preventiva anteriormente decretado pela Justiça."

Esse caso evidencia um paradoxo: enquanto as polícias do Distrito Federal estão entre as mais bem-avaliadas do país, as leis, consideradas brandas por muitos, e supostas falhas no Sistema Judiciário geram frustrações. Em contraponto, juízes buscam cumprir, com rigor, o que determina a legislação vigente e optam pelo relaxamento quando realizadas em desacordo com o ordenamento jurídico. Diante desse cenário, como garantir a manutenção da prisão de criminosos com vasta ficha criminal e autores de crimes graves? Questões como a aplicação mais rígida das leis e mudanças na legislação voltam às discussões.

O debate em torno da metáfora "enxuga gelo" mostra, muitas vezes, incredulidade na efetividade das operações. Em 31 de janeiro deste ano, 1.675 pessoas passaram por audiência de custódia. Dessas, 1.217 foram presas em flagrante e 458 em razão de mandado de prisão. No mesmo mês de 2024, o número de suspeitos apresentados ao Núcleo de Audiência de Custódia (NAC) foi de 1.376, sendo 1.056 por flagrantes e 320 por mandados. Nessa época, a Justiça concedeu liberdade a 371 pessoas e relaxou seis prisões. 

Fábio Esteves, juiz do TJDFT, em entrevista ao Correio, defende uma abordagem mais equilibrada e justa da prisão, priorizando a liberdade, combatendo a seletividade penal e buscando a reinserção social dos indivíduos.

De acordo com Esteves, a legislação prioriza a liberdade como regra, sendo a prisão uma exceção. O Sistema Judiciário deve garantir que as prisões sigam a legislação. "A prisão cautelar só é justificável quando a liberdade do indivíduo representa um risco concreto. O que temos que olhar é que há uma lei processual penal que restringe a prisão para determinados crimes com pena inferior a quatro anos, como é o caso do furto, em que a própria lei não vai permitir a prisão. No caso do estelionato, a mesma coisa", explica o magistrado que, atualmente, exerce o cargo de juiz instrutor do gabinete do ministro Edson Fachin, no Supremo Tribunal Federal (STF). 

"No crime de tráfico de drogas, que é o mais comum dentro da Justiça criminal, temos os traficantes e as chamadas 'mulas'. Há uma distinção. Para a figura das 'mulas', temos o tráfico privilegiado, que impõe pena de um ano e oito meses. Ou seja, não cabe manter essa pessoa presa", prossegue o magistrado.

A lógica é diferente para homicídio, roubo e violência sexual. "No crime de roubo, dificilmente você verá algum benefício ao réu. No de homicídio, temos os tribunais do júri a todo vapor condenando. Crimes sexuais estão recebendo uma rigorosa medida", observa o magistrado. "Quem de fato está sendo solto? Quem são as pessoas que representam perigo concreto? Ou estamos, com essas conversões, gerando prejuízos ao Estado? Um preso custa, em média, R$ 7 mil por mês ao Estado", pondera.

Prende e liberta

Nos meses de janeiro de 2024 e 2025, as medidas cautelares mais aplicadas pela Justiça em audiências de custódia foram: proibição de ausentar-se da comarca, restrições relacionadas à violência doméstica, deferimento de medidas protetivas, proibição de contato com determinadas pessoas e de frequentar certos locais e, em sexto lugar, a monitoração eletrônica.

O coronel Leonardo Moraes, presidente da Associação dos Oficiais da PMDF (Asof), afirma que a questão atinge frontalmente a chamada sensação de segurança. "A grande maioria desses delinquentes frequenta os mesmos lugares e acabam se tornando conhecidos do policiamento e da população local. Imagine você prestar queixa contra um roubo e, no dia seguinte, às vezes no mesmo dia, você dá de cara com o assaltante na rua de seu trabalho ou casa?", exemplifica.

O militar defende que a raiz do problema não está na Justiça enquanto sistema, mas no arcabouço de leis existentes no país. "As cortes superiores também têm uma visão equivocada e chamada de 'humanista', que vem dando interpretações que, a nosso ver, não cabem e são uma verdadeira usurpação de função dos legisladores", analisa. A consequência disso, segundo Moraes, é um impacto direto nos membros das forças.

Em março de 2023, o policial penal federal Bruno César de Lima Barbosa, lotado na Penitenciária Federal em Brasília, foi preso por suspeita de receber encomendas de medicamentos e anabolizantes pelos Correios. Na casa dele, havia uma plantação de maconha e porções de drogas. Isso não impediu a liberdade do servidor. "Não há indicativos concretos de que pretenda se furtar à aplicação da lei penal, tampouco que irá perturbar gravemente a instrução criminal", declarou o juiz durante a audiência de custódia.

A delegada Bruna Eiras, chefe da 8ª Delegacia de Polícia (Estrutural), uma das regiões mais perigosas do DF, também avalia o problema. "Às vezes, até em crimes graves, que têm violência ou grave ameaça à pessoa, o criminoso fica em liberdade. Isso acontece porque o júri não tem tempo hábil para analisar a vida pregressa do indivíduo, sendo reincidente ou não. O tribunal interpreta que ele tem condição de responder, sendo assim, solto e só sendo julgado futuramente", explica.

Bruna enfatiza que, para o preso, a detenção é encarada como algo banal ou como um "castigo temporário". "Até ele responder ao processo e ser julgado vai ter um lapso temporal grande e, nesse período, a gente prende novamente. E essa é a sensação que a polícia tem, que é de enxugar gelo. Prendemos, ele vai até a audiência de custódia e é solto. Quando envolve esses crimes sem violência ou grave ameaça, ocorre dele ser preso diversas vezes."

Soltura ou preventiva

Nos trâmites da lei, ao ser preso em flagrante, o autor passa pela audiência de custódia, medida implementada no Brasil em 2015 para garantir os direitos fundamentais, como a liberdade e a presunção de inocência. Na audiência, o juiz decide se converterá a prisão flagrante em preventiva ou se concederá liberdade mediante a imposição de medidas cautelares, como o uso da tornozeleira.

O advogado criminalista Jerônimo Agenora, conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF), ressalta que, na audiência, o juiz deverá analisar a vida pregressa do suspeito, se ele tem ou não condenações, antecedentes criminais ou se o crime em apuração foi cometido mediante violência ou grave ameaça. "Sou um defensor da audiência de custódia. A prisão deve ser um ato excepcional e deve ser referendado por mais de um magistrado a fim de inibir prisões ilegais. Na minha opinião, a lei poderia ser mais objetiva no que tange aos critérios adotados para indicar o valor da fiança a ser paga pela pessoa que será posta em liberdade após passar pela audiência de custódia", defende.

Há de ser considerado ainda pelo juiz a visibilidade do delito, constatado pela materialidade e pela autoria, assim como, se a existência e liberdade daquela pessoa em si, acarretará em algum perigo à garantia da ordem pública, explica o advogado criminalista Paulo Barreto.

  • PRI-1603-PRISOES
    PRI-1603-PRISOES Maurenilson Freire
  • "Muitas vezes, até o autor de crime hediondo tem saído pela porta da frente e, quando os suspeitos são soltos, eles voltam a cometer crimes, porque a pena é leve. No âmbito da reincidência, as fichas ficam cada vez mais extensas na criminalidade e cada vez mais com crueldade. A lei deveria mudar para o tribunal ser mais rigoroso com crimes" — Rosimary Sales, 57 anos, moradora do Itapoã, auxiliar administrativa Caio Ramos
  • "Eles deviam colocar uma lei mais rígida aí para esses casos de roubo, feminicídio e qualquer agressão contra a mulher. Precisam arrochar nisso aí, porque do jeito que tá é como se não tivesse funcionando nada na Justiça. Muitas das pessoas que são presas já têm antecedentes criminais" — Samuel Florêncio, 29 anos, morador de Santa Maria, operador logístico Caio Ramos
  • Fábio Esteves, juiz do TJDFT e juiz instrutor do gabinete do ministro Edson Fachin, no STF
    Fábio Esteves, juiz do TJDFT e juiz instrutor do gabinete do ministro Edson Fachin, no STF Kayo Magalhães/CB/D.A Press

Reincidência 

O último estudo sobre reincidência no Brasil foi produzido em 2022 pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e revela que, na capital federal, 43,6% dos presos voltam a cometer crimes em até cinco anos, após saírem da cadeia por decisão judicial, fuga ou progressão de pena. Além desse problema, superlotação carcerária afeta todo o país. De acordo com dados do órgão, no segundo semestre de 2023, no território nacional, o número de presos em celas atingiu 648.480 pessoas em espaços projetados para 487.208. O cenário no "Quadradinho" também é crítico: são 15.930 detentos para 8.686 vagas. 

Duas perguntas para Fábio Esteves, juiz do TJDFT e juiz instrutor do gabinete do ministro Edson Fachin, no STF 

Existem brechas na legislação atual que permitem a soltura frequente de reincidentes?

A legislação brasileira prioriza a liberdade como regra. Tentamos fazer um equilíbrio entre o perigo da liberdade do réu e a proteção do bem jurídico. Percebemos que prender não é suficiente e, a partir daí, adotamos outros mecanismos, como a audiência de custódia.

E quanto aos aspectos culturais e à visão da sociedade quanto à soltura de criminosos reincidentes, por exemplo?

Essa parcela de crimes em que a lei não é alcançada pela liberdade, ainda não foi assimilada por todas as autoridades do sistema de Justiça. Faz parte do modelo de estado que vivemos por muito tempo, de autoritarismo, para manter determinadas propagandas de que a lei nao está sendo respeitada. Precisamos pensar nessas escolhas para ressignificar esse senso comum. O objetivo do Sistema Judiciário deve ser a reinserção social dos indivíduos, não apenas a punição. E a "política de prender e soltar" é uma simplificação excessiva de um problema complexo.

*Estagiário sob supervisão de Malcia Afonso


Darcianne Diogo
Caio Ramos*
postado em 23/03/2025 06:00 / atualizado em 23/03/2025 12:42