Violência de gênero

Lei do feminicídio completa 10 anos com 213 vítimas no DF

Especialistas ouvidos pelo Correio alertam para a necessidade de ampliar os investimentos em políticas de prevenção à violência contra a mulher e na promoção da igualdade de gênero

DF contabiliza 213 feminicídios na última década -  (crédito: Caio Gomez)
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DF contabiliza 213 feminicídios na última década - (crédito: Caio Gomez)

"Uma hora antes do crime, ela chegou à minha casa com os filhos. Estava alterada e com medo, dizendo que tentaria fugir para Santo Antônio do Descoberto (GO). Mais tarde, minha mãe me liga, desesperada, conta que estava ao telefone com minha irmã e escutou os gritos de socorro dela, que era agredida". O relato é de Roberto (nome fictício), irmão de Maria Mayanara Lopes Ribeiro, assassinada de forma cruel pelo companheiro Daniel Silva Vitor, 43 anos, há quatro meses, em Samambaia Norte. Maria foi a 20ª vítima de feminicídio em 2024, no Distrito Federal

Na última década, 213 mulheres foram vítimas de feminicídio no DF, segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP/DF). Em relação a 2024, houve uma redução de 23,33% comparado com 2023. Os dados mostram que, 2019 e 2023, foram os mais críticos para as mulheres, colocando o DF entre as cinco unidades da federação que, proporcionalmente à taxa de habitantes, registrou mais casos do crime no Brasil, segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública.  

Sancionada em março de 2015, a Lei do Feminicídio completou 10 anos este mês, e alterou o Código Penal, incluindo o homicídio contra mulheres no contexto de violência doméstica e de discriminação no rol dos crimes hediondos, aqueles que o Estado entende como de extrema gravidade, que causam aversão à sociedade e, portanto, merecem um tratamento diferenciado e mais rigoroso.

Além do endurecimento das penas, a lei foi pensada visando fortalecer as políticas públicas em defesa das mulheres, obter estatísticas sobre o crime e chamar atenção para a violência de gênero. 

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DF contabiliza 213 feminicídios na última década (foto: valdo)

Para Aline Yamamoto, consultora para assuntos de gênero e especialista em violência contra as mulheres, os feminicídios são a ponta do iceberg de todas as inúmeras violências que as mulheres sofrem cotidianamente, nos mais diferentes espaços que frequentam.

"Não acho que na última década houve uma expansão das políticas públicas de promoção da equidade de gênero, especialmente se considerarmos o orçamento voltado a essas políticas, e os enormes retrocessos ocorridos em decorrência da desestruturação das políticas federais no país", avalia a especialista. 

Aline participou da construção da lei que tipificou o feminicídio, enquanto secretária-adjunta de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Quando analisa os investimentos no combate aos crimes contra a vida das mulheres, Aline diz que, diante da magnitude do problema, os recursos vão primordialmente para o sistema de segurança e justiça, "que são absolutamente insuficientes e falhos para prevenir esses crimes".

"Se não conseguirmos entender, como sociedade, que as mulheres morrem porque legitimamos as várias violências que sofremos, se não entendermos que temos uma responsabilidade ampla, individual e coletiva sobre esse cenário, ainda levarão anos para vermos o efeito concreto dessas políticas", alerta Aline. (Leia Três Perguntas Para)

A mais recente iniciativa para aumentar o rigor na punição dos assassinos de mulheres é o Pacote Anti-Feminicídio. Foi com base nele que o algoz da irmã de Daniel — Maria, morta na frente dos filhos — foi condenado a mais de 43 anos de prisão, no primeiro julgamento do Brasil realizado levando em conta a nova legislação.

Questionado como se sente com a notícia da condenação do assassino de sua irmã, Roberto é categórico: "O único sentimento que nos livramos é o da impunidade de Daniel", ressalta. "Para minha mãe, é um alívio, mas, ao mesmo tempo, a gente fica com a sensação de que, nem se ele fosse condenado a mil anos, seria o suficiente. Ainda temos medo da sua soltura no futuro", completa.

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Manipulação e controle

Dias depois do crime, Roberto foi à casa da irmã e ficou chocado com o que viu. "Encontrei um quadro com uma lista de regras que Daniel tinha feito para ela. Algumas das 'normas' incluíam não mencionar o nome do ex-marido, não falar da vida deles para as famílias nem andar sem roupa íntima fora de casa. Sabíamos que ele tinha um ciúme possessivo dela, mas não tínhamos noção da proporção disso", lamenta Roberto. 

Segundo Miriam Mendonça Pondaag, doutora em psicologia e especialista em violência de gênero, as mulheres têm muita dificuldade em identificar os sinais de violência, porque culturalmente podem interpretá-los como manifestações de amor — sentimento hipervalorizado, assim como estar a todo momento com o parceiro.

"O homem vigia a roupa que ela usa para sair e monitora os lugares que ela frequenta, por exemplo, aguardando-a na saída de algum compromisso. Muitas mulheres interpretam isso como cuidado, pensam 'ele gosta de mim, se preocupa comigo, tem ciúmes e não quer me perder'. Isso faz com que, muitas vezes, elas só percebam que estão em uma relação de violência quando são vítimas de agressões mais graves", explica Miriam, também professora universitária.

A impossibilidade de fazer uma leitura deste cenário de violência, por conta destas representações culturais, coloca em primeiro lugar o amor e o casamento, situação em que a mulher neglicencia a própria saúde, segurança e bem-estar. "Nós somos educadas e socializadas para servir ao outro, o que pode gerar fantasias como a de que o parceiro vai mudar ou de que o nosso amor vai transformar tudo", destaca a especialista.

 Maria Mayanara Lopes Ribeiro foi assassinada na frente dos filhos em Samambaia. Feminicida foi condenado a 43 anos de prisão
Maria Mayanara Lopes Ribeiro foi assassinada na frente dos filhos em Samambaia. Feminicida foi condenado a 43 anos de prisão (foto: Reprodução/Redes Sociais)

Adoecimento e luto

Maria Mayanara pouco contava do relacionamento para a família. A mãe, que desconfiava das agressões, aconselhava a filha a deixar a relação e ir embora. Mas a jovem tinha medo das ameças do companheiro. "Depois do assassinato, eu soube que ele a ameaçava, dizendo que iria nos matar caso fosse deixado", recorda Roberto.

A psicóloga Miriam Mendonça Pondaag destaca que, além do sentimento de insegurança, mulheres vítimas de violência podem desenvolver dificuldades de contato social.

"Elas ficam com o senso de confiança abalado e podem sofrer com baixa autoestima, levando à percepção de si mesmas como incapazes. Dados mostram que mulheres vítimas de violência têm maior incidência de depressão, transtorno de ansiedade, distúrbios alimentares e quadros de estresse pós-traumático, no qual há um sentimento permanente de hipervigilância", detalha.

Situações semelhantes podem ser manifestados por familiares que conviveram nesse cenário de violência ou, pior, que passaram pela dor de perder uma mãe, filha ou irmã para o feminicídio.

Entre os sintomas, estão o retraimento social, os comportamentos agressivos ou antissociais, de ação suicida, sintomas somáticos, evasão escolar das crianças, dificuldade de aprendizado nas crianças e adolescentes e adolescentes regressivos.

Essas consequências emocionais são agravadas quando os filhos do feminicídio são testemunhas do crime, precisam lidar com o afastamento do pai — no caso de ele ser o agressor — ou passam a viver em situação de vulnerabilidade social, devido à perda da mãe.

Os dois filhos de Maria Mayanara, um menino e uma menina, estão, agora, sob os cuidados da avó materna. "Minha mãe só aguentou essa perda por conta dos netos e do filho mais novo. A gente vai tentando superar, empurrar com a barriga. Mas, como eu moro perto, tudo me lembra ela (a irmã), inclusive, minha sobrinha (filha de Maria), que é a cara da mãe", conta Roberto. 

Prevenção 

Ao Correio, o secretário de Segurança Pública do DF, Sandro Avelar, destaca que, diferentemente de outras Unidades da Federação, no DF, todas as mortes violentas intencionais de mulheres são registradas e investigadas como feminicídio.

"Isso garante que a investigação criminal se dê sempre com a perspectiva de gênero, evitando a subnotificação e possibilitando uma atuação mais eficaz na prevenção e no combate a esse crime", afirma o chefe da pasta. 

Avelar pontua que o feminicídio é um crime de difícil combate, visto que a maioria dos casos ocorre no interior das residências, longe do alcance imediato das forças de segurança, e com armas de fácil acesso, como facas.

"Nossos estudos apontam que, na maior parte dos casos aqui do DF, as vítimas já sofriam agressões antes do crime, mas não buscaram ajuda. É essencial fortalecer a cultura de acolhimento e romper o silêncio. Diante de qualquer indício de agressão, denunciar pode fazer a diferença e salvar vidas”, avalia o secretário.

Sandro Avelar, destaca que, diferentemente de outras Unidades da Federação, no DF, todas as mortes violentas intencionais de mulheres são registradas e investigadas como feminicídio
Sandro Avelar, destaca que, diferentemente de outras Unidades da Federação, no DF, todas as mortes violentas intencionais de mulheres são registradas e investigadas como feminicídio (foto: Fotográfo/Agência Brasil)

Entre as ações de proteção às vítimas, o secretário cita o uso de tecnologias que asseguram o cumprimento das medidas protetivas de urgência, a fim de garantir o atendimento policial prioritário em situações de risco grave.

"Um dado importante é que nenhuma mulher atendida pelos nossos programas de monitoramento sofreu agressões posteriores, demonstrando a efetividade dessas ações", reforça. O aprimoramento das iniciativas também inclui, segundo o secretário, a capacitação das equipes e ampliação da estrutura de atendimento. 

Para a secretária da Mulher, Giselle Ferreira, a democratização dos espaços de acolhimento a mulheres que sofrem violência tem sido fundamental para expandir a rede de proteção no DF.

"Passamos de 14 equipamentos públicos, no início da gestão, para 30, como os Espaços Acolher, os Comitês de Proteção à Mulher e as Casas da Mulher Brasileira. Esta última, por exemplo, ganhará mais quatro unidades neste ano. Também temos intensificado os cursos de capacitação, para que elas tenham autonomia financeira e possam sair desse ambiente de violência", destaca. 

Aline Yamamoto é consultora para assuntos de gênero e especialista em violência contra as mulheres. Participou da construção da lei que tipificou o feminicídio, enquanto secretária adjunta de Políticas para as Mulheres da Presidência da República
Aline Yamamoto é consultora para assuntos de gênero e especialista em violência contra as mulheres. Participou da construção da lei que tipificou o feminicídio, enquanto secretária adjunta de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (foto: Arquivo pessoal)

Três perguntas para

Aline Yamamoto, consultora para assuntos de gênero e especialista em violência contra as mulheres. Participou da construção da lei que tipificou o feminicídio, enquanto secretária adjunta de Políticas para as Mulheres da Presidência da República

O que a criação da Lei do Feminicídio, que completa uma década este mês, representou para a luta contra a violência de gênero no Brasil? 

A luta das mulheres contra a violência de gênero no Brasil sempre teve como um dos lemas de denúncia, desde as décadas de 1970 e 1980, "quem ama não mata". No entanto, as especificidades das mortes das mulheres nunca foram levadas a sério ou sequer visíveis. A tipificação do feminicídio trouxe junto um amplo debate sobre como as mulheres são assassinadas no país, e caracteriza esse crime como um ato de ódio e menosprezo, e não um ato passional, ou motivado por "amor". E considerando que o pano de fundo de tanta violência envolve questões estruturais de desigualdades, arraigadas na cultura machista misógina, nomear feminicídio como um crime de ódio é um chamado para a urgência de aprimorar a resposta do estado brasileiro, em termos de direito à justiça, à memória e à verdade, para não continuarem reproduzindo os mesmos estereótipos de gênero que levam as mulheres à morte.

Como os assassinatos de mulheres em contextos de violência doméstica e familiar ou derivado da misoginia eram classificados anteriormente?

Os assassinatos de mulheres eram considerados homicídios, e o que identificamos nos estudos de processos é que esses crimes são comumente praticados com requintes de crueldade e o sistema de segurança e justiça muitas vezes sequer aplicavam as agravantes de violência doméstica, ou comumente classificavam como crimes privilegiados (cuja pena é menor) reproduzindo os estereótipos e muitas vezes culpabilizando as próprias mulheres ao justificar os atos cometidos contra elas.

O que ainda é preciso ser feito para frear essa violência? 

Do ponto de vista do Estado, é preciso colocar em práticas políticas que tenham orçamento suficiente e que sejam efetivamente intersetoriais, transversais e integradas, considerando as múltiplas formas de opressão e desigualdades. Além da melhoria do acesso aos serviços disponíveis depois que aconteceu a violência, é primordial investimento em prevenção e isso significa investir em assegurar direitos, oportunidades, autonomia para meninas e mulheres. Trabalhar a igualdade e não discriminação de gênero, raça e etnia em todos os níveis de educação, formal e informal. Como coletivo e indivíduos, não aceitar os sinais mais sutis de violência e discriminações, para que a vergonha mude de lado e não seja mais das mulheres, e sim de quem as pratica.

Fortalecimento de políticas públicas

A Lei do Feminicídio inovou o ordenamento jurídico ao qualificar o homicídio praticado contra a mulher por motivação de gênero, em contexto de violência doméstica e familiar ou discriminatório. Assim como a Lei Maria da Penha, é fruto de um intenso e persistente movimento feminista que buscava dar nome e visibilidade as violências praticadas contra as mulheres, principalmente por seus companheiros e ex-companheiros.

É importante reconhecer que todos os avanços em direitos das mulheres só foram possíveis pela luta do movimento feminista, desde o lobby do batom, responsável por garantir que o artigo 5º da Constituição Federal deixasse explícito que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, até o robusto conjunto de leis e tratados de direitos humanos que formam juntamente com a Lei do Feminicídio um microssistema protetivo para garantir que as mulheres possam viver livres de violência.

A inserção do feminicídio como crime hediondo, com sanções e regime de cumprimento mais severos, não necessariamente implica em meio dissuasório, isto é, faz com que os agressores mudem de ideia, tendo em vista o componente de ódio que conduz estas ações.

Nesse ponto, a Lei do Feminicídio deve dialogar com a Lei Maria da Penha no sentido de serem fortalecidas políticas públicas para mulheres e para homens poderem decidir os conflitos sem manejo da violência e que os homens possam entender o fim dos relacionamentos enxergando as mulheres com alteridade e respeito e não as objetificando segundo seus interesses.

Liz Elainne de Silvério e Oliveira Mendes é promotora de justiça colaboradora do Núcleo de Gênero do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT).

Onde pedir ajuda

» Ligue 190: Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF). Serviço disponível 24h por dia, todos os dias.

» Ligue 197: Polícia Civil do DF (PCDF)
WhatsApp: (61) 98626-1197

» Ligue 180: Central de Atendimento à Mulher, canal da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. Serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes.

» Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (Deam): funcionamento 24 horas por dia, todos os dias.

Deam 1: atende todo o DF, exceto Ceilândia
Endereço: EQS 204/205, Asa Sul.
Telefones: 3207-6172 / 3207-6195 / 98362-5673

Deam 2: atende Ceilândia
Endereço: St. M QNM 2, Ceilândia
Telefones: 3207-7391 / 3207-7408 / 3207-7438

Letícia Mouhamad
postado em 16/03/2025 05:00 / atualizado em 16/03/2025 11:44